domingo, 18 de setembro de 2011

O observador e "o que é"


Interlocutor P: O problema da dualidade e de seu findar não pode se compreendido a menos que investiguemos a natureza do pensador e o pensamento. Podemos discutir isso?

Krishnamurti: Como tratam este problema os pensadores hindus, os filósofos Advaita?

P: Os Yoga-Sutras de Patanjali postulam um estado de liberação com âncoras (bija) e um estado de liberação sem âncoras. Em um, o pensador é o apoio. O que sujeita; é um estado onde o pensador não deixou de existir. O outro é um estado onde tudo tocou o seu fim, inclusive o pensador.

Os budistas falam de kshana vada; o tempo como o instante, instante completo e total, onde o pensador não tem continuidade. Os filósofos Advaita falam da cessação da dualidade e do atingir da não-dualidade. Passam através de um processo dualístico para obter um estado não-dual. Sankara aborda este estado de não-dualidade mediante a negação (neti-neti). Em Nagarjuna, o filósofo budista, a negação é absoluta: se você diz que Deus existe, ele o nega; se você diz que Deus não existe, ele nega. Nega todo estado possível.

B: Buda disse que o que existe é a “Solidão do Real”. A pessoa é o resultado de seus pensamentos.

P: Todos eles falaram acerca da não dualidade – o Buda, Sankara, Nagarjuna. Mas a não dualidade se tornou um conceito que não afetou a estrutura da mente em si. Na Índia têm estado discutindo por séculos o enfoque negativo, mas isso não afetou a estrutura da mente humana. As células permaneceram dualísticas; operam no tempo e estão presas no tempo. Apesar de ter sido proposta a negação e o não-dual, não existe um indício de que hajam compreendido estes estudos. Por que a não dualidade não afetou a mente do homem? Podemos investigar isto, para ver se é possível descobrir aquilo que há de desencadear o estado não-dual?

B: Todos os outros desenvolvimentos – o científico, o tecnológico –, afetaram as mentes dos seres humanos. O homem descobriu o estado de não dualismo mas ele não afetou nem a sua mente nem a sua vida.

S: Se toda experiência deixa um vestígio nas células cerebrais, qual é o impacto do estado de não-dualidade, de unicidade? Por que não se produz uma mutação na relação que há entre o pensador e o pensamento?

P: O mecanismo que registra o tecnológico é o mesmo que “vê”, que “percebe”?

Krishnamurti: A célula tecnológica, a célula que registra e a célula perceptiva...

P: E elas parecem formar o “ego”.

Krishnamurti: O fragmento tecnológico e o fragmento que registra – ambos constituem o “ego”. O perceptivo não.

P: Eu incluo também o “perceber”. O fato de registrar pertence a ambos os elementos: o tecnológico e a percepção.

Krishnamurti: Isso pode ser uma explicação verbal.

P: O núcleo fundamental do homem jamais parece ser afetado. A dualidade básica e essencial entre o pensador e o pensamento continua.

Krishnamurti: Você pensa que há basicamente uma dualidade, ou só existe “o que é”, o fato?

P: Quando você formula uma pergunta como essa, senhor, a mente fica quieta e diz: sim, é assim. Logo começa a dúvida: não estou eu separado de S, de B? Ainda que a mente diga “sim”, menos de um segundo depois ela também duvida. No momento em que você formulava a pergunta, minha mente se aquietou.

Krishnamurti: Por que não permanece aí?


P: Surge o interrogante.

Krishnamurti: Por que? Isso é um hábito, tradição, é a própria natureza operativa do eu, o condicionamento? Tudo isso pode ser devido ao que a cultura impõe para sobreviver, para funcionar, etc.. Por que introduzir isso quando estamos considerando o fato de se existe uma dualidade que seja básica?

P: Você disse que esta pode ser uma ação reflexa das células cerebrais?

Krishnamurti: Nós somos o resultado de nosso meio, de nossa sociedade. Somos o resultado de todas as nossas interações. Esse também é um fato. Eu me pergunto: existe uma dualidade básica no núcleo do ser? Ou a dualidade surge quando me afasto de “o que é”? Quando não me afasto da qualidade básica não-dualista da mente, tem aí dualidade o pensador? Ele pensa. O pensador cria uma dualidade quando permanece completamente com “o que é”? Eu nunca penso quando olho uma árvore. Quando olho você, não há divisão entre “mim” e “você”. As palavras são usadas para fins linguísticos e comunicativos. No que me concerne, o “mim” e “você’, por alguma razão não se arraigou. Conseqüentemente, onde é que surge o pensador separado do pensamento? A mente permanece com “o que é”. Permanece com o sofrimento. Não há um pensar acerca do sofrimento. Há um sentir o sofrimento. Isso é “o que é”. Não há um sentimento de querer ver-se livre disto. Aonde surge a dualidade? A dualidade surge quando a mente diz: “Eu devo livrar-me do sofrimento. Conheci estados de não-sofrimento e desejo encontrar-me nestes estados”. (Pausa)

Digamos que você é um homem e eu uma mulher. Esse é um fato biológico. Mas existe um dualismo psicológico? Há um estado basicamente dualístico, ou este só existe quando a mente se afasta de “o que é”?

Há dor. Meu filho morreu. Não me movo daí. Aonde está a dualidade? Somente quando digo que perdi meu companheiro, meu filho, surge essa dualidade. Me pergunto se isto é verdadeiro.

Estou sofrendo – uma dor física ou psicológica. Ambas estão incluídas no sofrimento. Um movimento para escapar disto é dualidade. O pensador é o movimento de escapar. O pensador diz então que isto não deveria ser, ele também diz que não deveria haver dualidade.

Primeiro, veja o fato de que o movimento para afastar-se de “o que é”, é o movimento do pensador que introduz a dualidade. Ao observar o fato do sofrimento, por que tem de haver um pensador nesta observação? O pensador surge quando há um movimento, seja para trás ou para adiante. Com o pensamento de que ontem eu não sofria, aparece a dualidade. Pode a mente permanecer com o sofrimento, sem movimento algum para afastar-se dele – o qual introduz o pensador?

A mente está perguntando a si mesma como surge esta atitude dualista para a vida. Não pede uma explicação de como estar fora disto. Ontem tive um prazer. Terminou. (Pausa) Não é tão simples como isso?

P: Realmente não.

Krishnamurti: Penso que é. Veja, isto implica uma observação não-comparativa. A comparação é dualística. O medir é dualístico. Há sofrimento hoje, e existe a comparação com o não-sofrimento de amanhã. Mas há penas um fato: o sofrimento que a mente está experimentando agora. Nada mais existe. Porque complicamos isto? Porque construímos filosofias tremendas ao redor de tudo isto? Estamos errados em algo? Será que a mente não sabe o que fazer e portanto, se afasta do fato e dá origem a dualidade? Se ela soubesse o que fazer, produziria a dualidade? É o próprio “o que fazer” um processo dualístico? Compreende? Vejamos de novo. Há sofrimento – físico ou psicológico. Quando a mente não sabe o que fazer no sentido não-dualístico, escapa. Pode a mente que está presa na armadilha – o movimento de avançar e retroceder –, haver-se com “o que é” num sentido não-dualístico? Compreende? Assim é que nos perguntamos, pode o sofrimento, ‘o que é’, transformar-se sem que intervenha a atividade dualística? Pode haver um estado de não-pensar no qual o pensador não surja em absoluto? O pensador que diz: “ontem eu não sofria e não quero sofrer amanhã”.

P: Veja o que ocorre conosco. O que você disse é correto. Mas falta algo dentro de nós, pode ser que isto seja força, energia. Quando há uma crise, o peso desta crise é suficiente para submergir-nos em um estado onde não há um movimento para afastar-nos dessa crise; mas na vida de todos os dias temos “pequenos” desafios.

Krishnamurti: Se você realmente compreendesse isto, enfrentaria estes pequenos desafios.

P: Na vida cotidiana temos o tagarelar, o movimento errático do pensador, operando com suas exigências. Que é feito com isso?

Krishnamurti: Eu não creio que você possa fazer nada com isto. Essa é a negação. Não vem ao caso.

P: Mas é muito, muito importante. Isso é o que são nossas mentes – a parte errática. Carecemos de negar isso.

Krishnamurti: Escute, fora há ruído. Não podemos fazer nada com respeito a isso.

P: Quando há uma crise, há contato. No viver normal não há contato. Eu saio ao exterior, posso olhar uma árvore e não há dualidade. Mas existe o outro, a interminável, errática, absurda parte que se encontra tagarelando permanentemente. Quando o pensador a vê funcionar, começa a operar sobre ela. A grande negação é deixá-la em paz.

Krishnamurti: Estabeleça o fator fundamental – observar a dor sem escapar dela; esse é o único estado não-dualístico.

P: Falemos da mente tagarelante em lugar de falar da dor, porque neste momento o fato é esse. O ruído dessa buzina, a mente tagarelante, isso é “o que é”.

Krishnamurti: Você prefere isto e não prefere aquilo; em conseqüência, começa todo o círculo vicioso.

P: O ponto central é a observação de “o que é” sem afastar-se disso. A ato de afastar-se cria o pensador.

Krishnamurti: Porque o ruído, o tagarelar que era “o que é’, se desvaneceu; desapareceu, mas a dor permanece. A dor não se foi. Ir mais além da dor não-dualisticamente, essa é a questão. Como há de fazer-se isso? Qualquer movimento para afastar-se de “o que é” é dualístico, porque nisto está operando o pensador sobre “o que é” – que é o dualístico.

“O que é”, – o dualístico, pode ser observado? Se observarmos “o que é” sem que tenha lugar o movimento dualístico, transformará isso “o que é”? Compreende minha pergunta?

P: Isto não implica realmente uma dissolução de “o que é”? Daquilo que o criou?

Krishnamurti: Eu só conheço “o que é”, nada mais. Não a causa.

P: É assim. Pode ser visto que quando não se escapa do sofrimento, há uma dissolução do sofrimento.

Krishnamurti: Como ocorre isto? Por que o homem não encontrou isto? Por que tem combatido a dor com um movimento dualístico? Por que nunca compreendeu a dor? Por que não a investigou profundamente sem o movimento dualistico? O que sucede quando não se escapa da dor? Não o que sucede com a dissolução da dor, mas sim o que sucede com o mecanismo que opera na dor. É simples. A dor é o movimento de afastar-se, de escapar. Quando apenas existe um escutar, não há dor. Há dor unicamente quando me afasto do fato e digo: isto é agradável, isto é desagradável. Meu filho morre. Esse é um fato irrevogável. Absoluto. Por que há dor?

P: Porque eu o amava.

Krishnamurti: Olhe o que já aconteceu inconscientemente. Eu o amava. Ele se foi. A dor é a recordação de meu amor por ele. E ele já não existe mais. Mas o fato absoluto é que ele se foi. Permaneça com o fato. Só há dor quando surge o pensador e diz: “meu filho já não existe mais, ele era meu companheiro”, e assim sucessivamente.

S: A dor não é meramente a recordação de meu filho que morreu. Agora há solidão.

Krishnamurti: Meu filho está morto. Esse é o fato. Então surge o pensamento de solidão. E há a identificação com meu filho. Tudo isso é um processo de pensamento e pensador. Mas eu tenho somente um fato: meu filho se foi. A solidão, a falta de companhia, a desesperação, são todas o resultado do pensamento que cria a dualidade; um movimento que se afasta de “o que é”. É isto o que engendra a amargura, insensibilidade, falta de amor, indiferença; todos são produto do pensar. O fato é que meu filho está morto. A não percepção de “o que é”, engendra o pensador, e isso constitui uma ação dualística.

E quando a mente volta a cair na armadilha da ação dualistica, isso é “o que é”; fique com isso – por que qualquer movimento para escapar disso é outra ação dualística. A mente sempre está tratando com “o que é” como ruído ou não ruído. E “o que é”, o fato, não necessita transformação porque já é “o que está mais além”. A ira é “o que é”. O movimento dualístico de não-ira se afasta de “o que é”. Se não há movimento para escapar de “o que é”, não há mais ira. Por tanto, uma vez que foi percebido, uma vez que foi tida a percepção não-dualística, quando a ira surge de novo, a mente não atua desde a memória. Na próxima vez que brota a ira, isso é “o que é”. Em conseqüência, o conceito dualístico é totalmente errôneo, enganoso.

P: Esta é uma ação tremenda. A ação dualística é não ação.

Krishnamurti: Você tem que ser muito simples. A mente que pode compreender não é a mente astuta, a mente rápida que trata de encontrar substitutos para a ação dualística. Nossas mentes não são simples o bastante. Ainda que todos falemos de simplicidade, essa simplicidade é a simplicidade da tanga do yogui.

O não-dual significa realmente a arte de escutar. Você ouve esse cão ladrar – escute-o sem um único movimento para escapar dele; permaneça com “o que é”. (Pausa)

O homem que permanece com “o que é” e nunca se afasta disso, não conserva vestígios.

P: E quando os vestígios (samskara) se produzem é preciso ver que se produzem. Um ato de percepção apaga o vestígio.

Krishnamurti: Absolutamente certo. Esse é o modo de viver.


Extraído do livro Tradicion Y Revolucion, de Jiddu Krishnamurti, Ed. Edhasa, tradução dos irmãos Eliane Zaranza e Lúcio Saens para estudo em Loja realizado em 13 de setembro de 2011.

"Nenhum Teósofo, do menos instruído ao mais culto, deve pretender a infalibilidade no que possa dizer ou escrever sobre questões ocultas" (Helena P. Blavatsky, DS, I, pg. 208). A esse propósito, o Conselho Mundial da Sociedade Teosófica é incisivo: "Nenhum escritor ou instrutor, a partir de H.P. Blavatsky tem qualquer autoridade para impor seus ensinamentos ou suas opiniões sobre os associados. Cada membro tem igual direito de seguir qualquer escola de pensamento, mas não tem o direito de forçar qualquer outro membro a tal escolha" (Trecho da Resolução aprovada pelo Conselho Geral da Sociedade Teosófica em 23.12.1924 e modificada em 25.12.1996.

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