quarta-feira, 7 de janeiro de 2015

Abertura

Extraído do livro “A Dança do Vazio”, de Adyashanti

Uma parte importante da satsang, quando nos reunimos para explorar a Verdade, é estar de coração aberto. Algumas pessoas acham que é mais fácil estar com a mente aberta; outras acham que é mais fácil estar de coração aberto, mas estar aqui nesse momento é, de fato, estar de ambos os modos.  Quando você está aberto, você não filtra a experiência nem se bloqueia. Você não tenta se defender, mas apenas se abre para o mistério, questionando aquilo que você acredita.

Quando você se dá este presente incrível de não tentar encontrar a si mesmo dentro de algum conceito ou de alguma sensação específica, então a abertura se expande até que a sua identidade se torna cada vez mais a própria abertura, e não um ponto de referência na mente chamado crença ou uma determinada sensação no corpo. A questão não é livrar-se dos pensamentos ou sensações, mas apenas não se sentir situado neles.

A abertura não tem uma localização específica. Ela parece estar em toda parte.  Nela há espaço para qualquer coisa.  Pode haver um pensamento ou não. Pode haver um sentimento ou não.  Pode haver som. Pode haver silêncio. Nada perturba a abertura. Nada perturba a sua verdadeira natureza. Nós só ficamos perturbados se nos fechamos quando nos identificamos com um determinado ponto de vista, com um conceito de eu para o que nós somos ou para o que nós acreditamos ou sentimos que somos;  quando nos colocamos em oposição àquilo que está acontecendo.  Porém, quando nós estamos vivendo a nossa verdadeira natureza, que é a abertura, descobrimos que, na verdade, não estamos em oposição à coisa alguma.  O que quer que esteja acontecendo na abertura está perfeitamente bem, e por isso nós somos capazes de responder à vida de forma espontânea e sábia.

A satsang tem a ver com recordação.  É como se você esquecesse que você era essa abertura e que você pensasse que você era alguma coisa. Os humanos criaram mitologias intermináveis sobre como nós nos esquecemos, mas isso realmente não importa. O cerne da satsang não é você modificar e alterar a si mesmo, mas você lembrar o que você é.  A Verdade tem a ver apenas com lembrar, reconhecer e perceber a sua verdadeira natureza.

Sabe aquela experiência de esquecer alguma coisa que estava na sua mente a um minuto atrás? A mente pode lutar para lembrar, mas isso só dificulta mais.  O que ajuda no final das contas? É você relaxar um pouco. Você esquece que está tentando lembrar e você relaxa. "Ah, é isso!" A resposta vem do nada. A autorrealização é exatamente assim, imediatamente assim, agora. Ela acontece a partir da sua disposição para relaxar e não saber.

Você pode ter uma experiência de abertura nesse exato momento. Você não precisa se abrir ou tornar-se mais aberto. Apenas reconheça a abertura que já está sendo experimentada aqui e agora. Você a conhece do lado de dentro, do lado de fora, em todos os lugares. Apenas sinta a experiência da abertura.  Deixe de lado a palavra "abertura". Deixe que ela desapareça e a experiência ganha mais profundidade e se torna cada vez mais destituída de palavras. Exista simplesmente a partir desse lugar que é destituído de palavras. Então você não irá se confundir com palavras, nem limitar a sua experiência por acreditar nas palavras.  Mas no momento que você impõe a palavra "abertura", a experiência adquire certo sabor, o que não é muito correto.  A abertura pode estar muito próxima, mas não é bem o que ela era quando você não possuía o conceito.

Esse processo de desapego pode se aprofundar. Esse aprofundamento pode parecer algo como colocar-se no desconhecido da mente, a qual tende a conceituá-lo, limitando a experiência, mas na verdade é um conhecimento mais profundo da experiência de ser o próprio ser. Nessa experiência mais profunda, a pessoa limitada que você pensou que era começa a perceber que você é esta abertura e não aquilo. Você também vê que isso é o que os outros são. Quando você se liberta, não é apenas a si próprio; é o Ser que se liberta. Você está se lembrando do Ser de todas as pessoas, porque ele é o mesmo Ser. Quando se percebe isso, se torna possível a transformação total da interação humana.

Mente aberta, coração aberto.  Perceba que não existe alguém para você proteger.  Não existe a necessidade de uma barreira emocional nem de sentimentos de separação e isolamento que surgem a partir dessa barreira.  O único motivo que você teve na vida para pensar que precisava de proteção aconteceu por conta de um mal-entendido muito inocente. Isso aconteceu porque quando você adquiriu o conceito de si mesmo na sua mais tenra infância, você também recebeu um kit para construir muros que iriam proteger esse conceito. Você aprendeu a adicionar coisas a esse kit à medida que as circunstâncias fossem surgindo. Quando uma boa dose de raiva lhe parecia útil, você acrescentava isso ao kit ou talvez  você adicionasse algum ressentimento, vergonha, culpa ou sentimento de vítima.  Quer você se apegue à autoimagem como uma pessoa bondosa ou como uma pessoa inadequada, o kit da identidade é usado para proteger essa imagem.

Isso é muito inocente. E acontece sem o seu conhecimento do que está acontecendo. Continua até você perceber que, inerente a essa percepção do "eu" como autoimagem na mente e no corpo, existe a crença de que você precisa de proteção.  Você não consegue ter a autoimagem sem a proteção. Elas vêm na mesma caixa.

Quando você retira a proteção, a verdade entra e leva embora a autoimagem. É por isso que a autoimagem vem com um muro, porque, sem o muro, a lembrança da sua verdadeira natureza pula rápido e leva embora a autoimagem, seja ela boa ou ruim. Não existe autoimagem que não tenha um muro de proteção, nem autoimagem que não implique em sofrimento.  Você não somente possui os seus próprios muros; também existem os muros que você projeta nas outras pessoas, as imagens que você tem delas que o impedem de ver a verdadeira natureza dessas pessoas.

Com a disposição de ver que uma imagem não é real, os muros desabam. Quando o lado intelectual se abre, você se torna uma pessoa de mente aberta. Quando o lado emocional se abre, você se torna uma pessoa de coração aberto. Quando a percepção da Verdade remove o eu limitado, de repente não existe a autoimagem, existe apenas a presença total. A presença total! Essa abertura está presente e sem imagens. Não há necessidade de  protegê-la. Alguém pode gritar com ela e o som atravessar o espaço. Tudo bem. Alguém pode amá-la. Isso é bom, mas não lhe acrescenta nem subtrai nada.

Agora, um aspecto curioso sobre a Verdade, iluminação ou despertar, é que nós a deixamos escapar,  mesmo ela não estando oculta.  Ela não está distante, aguardando o nosso momento de merecê-la.  Ela é difícil de encontrar, porque vive aqui mesmo. Essa abertura sempre esteve aqui. Se ela tivesse voz, ela diria algo do tipo: "Pelo amor de Deus, eu quero saber por quanto tempo ainda essa coisa de imagem vai continuar!"

Este Ser destituído de imagem é muito tranquilo – chame-o você de despertar, consciência ou abertura ou use você qualquer palavra para lhe desencadear a lembrança. Mas não acredite em mim. Assimile as palavras no íntimo. Descubra por si mesmo. Você é a autoridade. Eu sou apenas o mensageiro.

Quanto mais você percebe que você é a abertura, mais o seu corpo físico percebe que não há nada a proteger. Então, ele pode se abrir.  No nível emocional, você pode sentir isso como uma sensação nos seus músculos e ossos.  Então, a função mais profunda do corpo começa a se desdobrar e se torna uma expressão da abertura que você é na forma física, uma expressão da verdade, em vez de protetor do seu eu.  O corpo se torna uma extensão da própria abertura. O movimento da sua mão ou do seu pé se torna uma expressão da abertura; o seu contato com um objeto é percebido como uma extensão da abertura. Você sente um fascínio quase  infantil pelo movimento, pelos seus sentidos, por aquilo que está presente no mundo. A diferença é que quando o despertar espiritual se aprofunda e amadurece, você obtém aquilo que falta ao bebê:  sabedoria. O bebê, ao longo do tempo, se identifica com os objetos que lhe chamam a atenção e com as mensagens que os outros lhe transmitem sobre ele mesmo. Quando o corpo-mente amadurecido começa a ser uma extensão da abertura, da sua verdadeira natureza, ele redescobre a inocência, só que agora existe uma sabedoria profunda que lhe permite  fascinar-se sem jamais agarrar ou afastar alguma coisa, o que é desnecessário. Assim, o movimento e o fascínio não são infantis. São pueris, mas absolutamente sábios. Esta abertura detém a mais profunda sabedoria. Então finalmente você pode se fascinar, sem se perder numa identidade e sem qualquer sentido de poder ser ameaçado.

O mundo inteiro da criança tem a ver com o corpo.  É como deve ser, é como precisa ser. Mas o sábio inocente não está preocupado com a sustentação do corpo. O corpo é sustentado, mas não por conta do medo de não sustentá-lo.  Por isso é que lá, na mais profunda acolhida do seu Eu, existe a liberdade para você estar aqui, de fato, e viver a vida sem medo.

Outro aspecto da abertura é a intimidade. O acesso mais rápido à Verdade, e também à beleza, é quando você está totalmente íntimo com a experiência como um todo, com o interior e o exterior, mesmo que a experiência não seja "boa". Quando você está totalmente íntimo com a experiência como um todo, a mente dividida tem que desapegar daquilo que seja o seu projeto no momento. Nessa intimidade, a pessoa tem mais abertura e descobre a vastidão do todo.  Quer a qualidade da experiência seja desagradável ou muito bela, no momento que você está totalmente íntimo com a experiência como um todo, acontece a abertura.

Quando há intimidade com a experiência do momento como um todo, a consciência não se limita ao que está acontecendo no seu corpo emocional, no seu corpo físico, nas suas percepções ou nos seus pensamentos.  Existe apenas o todo percebendo a si mesmo, sentindo a si mesmo, pensando a si mesmo, e tudo o que está acontecendo tende a se resolver.  Quando o todo se percebe é muito diferente de quando o eu vivencia uma experiência. Quando nos soltamos dessa maneira, conforme dizia Bankei, um mestre zen, "Tudo se ajeita perfeitamente no Não Nascido".  Ele usava o termo Não Nascido para aquilo que eu chamo Verdade. Quando o todo se percebe, tem-se a impressão de que o Não Nascido está regulando a si mesmo por completo.  Ele jamais se detém na experiência. Ele simplesmente se harmoniza e se diverte. E quando você abre mão do seu projeto ou da sua agenda de compromissos, você pode ver que tudo se ajeita no Não-Nascido.

Às vezes você nota que tem um projeto acontecendo na sua mente. Você está tentando entender ou se livrar de alguma coisa, você está pensando sobre isso. Considere fazer uma pausa, parar de pensar por um momento. Einstein fazia isso. Ele pensava num problema e em seguida ele parava de pensar no assunto, porque ele acreditava que ele havia ido ao mais longe que poderia ir, e que ele havia esgotado todo o seu processo de pensamento racional. Mas fazer isso é um truque. Muitas pessoas acham que o processo do pensamento racional leva o indivíduo ao limite, e em vez de parar, ele faz uma curva de noventa graus à direita ou à esquerda e começa a se movimentar por toda a extensão desse limite, pensando de modo horizontal, resgatando mais fatos, experiências e memórias. Isso se chama perda de tempo. O único uso do pensamento que tem poder é um processo racional que vai direto ao limite do pensamento e depois cessa.  Isso permite que outra coisa faça nascer tudo que precisa nascer, e se parece muito com o que Einstein fez quando levou a cabo o seu processo de pensamento e depois deixou que algo nascesse. Então, o Não Nascido regula tudo com perfeição simplesmente porque ele é íntimo da experiência.

O acesso mais rápido a essa abertura para a sua verdadeira natureza não é tanto o pensamento, mas os cinco sentidos. Por exemplo, quando você escuta o momento como um todo e não apenas os sons disponíveis aos ouvidos, quando você sente a totalidade do momento como um todo, você se abre para além do espaço limitado do eu. Há uma sensação especial no corpo e você simplesmente sente isso; a sensação se estende. Você sente a tranquilidade absoluta. Você sente os pássaros. Você sente o que é sentir um som.

Os cinco sentidos lhe dão acesso imediato para além da mente da realidade virtual, para algo que não é criado mentalmente. É incrível quando você começa a deixar os seus cinco sentidos abrirem. Você percebe que noventa e nove por cento do seu problema é você confinar tudo,  focado numa direção apenas, e quando você se abre ao todo, tudo fica mais claro. No momento que você começa a sofrer, você percebe que os seus cinco sentidos desistiram de focar no todo e, em vez disso, eles estão focados em uma única coisa, o que causa sofrimento.

Você começa a ver que grande parte do sofrimento acontece porque esse foco estreito num único ponto da experiência faz com que seja muito difícil para o Não Nascido regular a si mesmo.  Mas  no momento que o foco se abre,  você sabe que é o Não Nascido regulando a si mesmo e tudo fica bem, mesmo que não pareça estar bem. Então você se movimenta para além de um ponto de vista limitado e você vê que, na verdade, não é você que percebe todas essas experiências, mas sim o todo que percebe a si mesmo.


Palo Alto, Califórnia, 25 de julho de 2001.


ADYASHANTI.  Emptiness dancing, pp. 21-30, Sounds True, Inc., Canada:  2006, tradução Roberto Carlos de Paula.  Texto selecionado para estudo em Loja realizado em  06.01.15.

"Nenhum Teósofo, do menos instruído ao mais culto, deve pretender a infalibilidade no que possa dizer ou escrever sobre questões ocultas" (Helena P. Blavatsky, DS, I, pg. 208). A esse propósito, o Conselho Mundial da Sociedade Teosófica é incisivo: "Nenhum escritor ou instrutor, a partir de H.P. Blavatsky tem qualquer autoridade para impor seus ensinamentos ou suas opiniões sobre os associados. Cada membro tem igual direito de seguir qualquer escola de pensamento, mas não tem o direito de forçar qualquer outro membro a tal escolha" (Trecho da Resolução aprovada pelo Conselho Geral da Sociedade Teosófica em 23.12.1924 e modificada em 25.12.1996.

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