O mundo é ilusório.
Apenas Brahman é real.
O mundo é Brahman.
Ramana Maharshi
O mundo é Brahman, a realidade última, quando percebida diretamente. Mas esse mundo possui um envoltório que se forma com as necessidades que criamos em relação ao mundo. Todas as pessoas têm as suas próprias necessidades. Há pessoas que têm a sensação de que o mundo não lhes deu o suficiente. Há pessoas que creem que o mundo não é seguro o bastante. Há pessoas que querem que todos estejam em paz. As várias necessidades que criamos em relação ao mundo ou em relação a nós mesmos crescem sem parar. Essas necessidades formam um envoltório. Quando se diz que ‟O mundo é ilusão″, isso significa que esse envoltório não existe. Ele não é real. Ele é apenas uma função da mente.
Quando alguém diz ‟Eu amo você″ e você acredita - ‟Afinal de contas, eu devo ser merecedor″ -, isso é uma ilusão. Não é verdade. Quando alguém diz ‟Eu odeio você″ e você acredita - ‟Meu Deus, eu sabia! Eu não sou merecedor″-, isso também não é verdade. Nenhum desses pensamentos possui uma realidade intrínseca. Eles são um envoltório. Quando a pessoa diz ‟Eu amo você″, ela está falando sobre si mesma, não sobre você. Quando a pessoa diz ‟Eu odeio você″, ela está falando sobre si mesma, não sobre você.
Visões de mundo são visões de si próprio, literalmente. Na verdade, esse mundo de envoltório perceptual não está acontecendo, exceto na mente. Uma boa maneira para se ter uma ideia disso é a pessoa imaginar que está morrendo. Tudo que morre com você é tudo que não era real: toda a visão de si mesmo, sua visão de mundo, como as coisas deveriam ser, como as coisas poderiam ser, como você deveria ser, como você poderia ser, se você era iluminado ou não iluminado. Todas essas ideias acabam no momento que o cérebro pára de funcionar. Neste momento, na verdade, nada disso existe. Nada disso está realmente acontecendo. Por isso o despertar espiritual tem um componente de morte.
Se você quer mesmo se libertar, você tem que estar preparado para perder o mundo, todo o seu mundo. Se você está tentando provar que a sua visão de mundo está certa, é melhor você fazer as malas e voltar para casa. Se você está querendo despertar e descobrir – ‟Aleluia! Eu tinha certeza disso tudo!″ , é melhor você entrar de férias ou voltar ao trabalho e não enlouquecer com as questões espirituais. Agora se for pouco atraente pensar em despertar e perceber – “Ah, eu estava totalmente errado. Eu estava totalmente errado a meu respeito, a respeito de todas as outras pessoas. Eu estava totalmente errado a respeito do mundo”, pode ser que você esteja no lugar certo.
Uma pessoa pode estar fazendo meditação para provar que a sua visão de mundo está certa, e não saber disso. Pode acontecer tanto por motivos positivos como negativos. A pessoa pode estar pensando “Eu sei que sou um Buda. Eu sei que sou iluminado. Eu sei que sou iluminado.” Mas mesmo com esse pensamento, a pessoa está tentando forçar uma visão de mundo e essa visão de mundo nunca se encaixa.
O mestre zen Huang Po incentivava as pessoas a descartar o Buda – a descartar todos os pontos de vista, todas as visões de mundo, inclusive a visão de mundo espiritual –, para que elas não impusessem nada àquilo que é. É daí que vem a frase: “Se você encontrar o Buda na estrada, mate-o.” Se você tem alguma imagem do que é a Verdade, destrua-a imediatamente porque não é.
Libertar-se desse envoltório de ideias e imagens é algo muito parecido com despertar de um sonho. Despertar é a única maneira de perceber que isso é um sonho. Nós podemos ser verdadeiros fundamentalistas – inclusive com os ensinamentos do Oriente. Você pode acreditar que o mundo não existe ou que o eu não existe, mas se isso não for algo que seja experimentado diretamente, então é só mais uma forma de fundamentalismo. É só mais uma forma da mente impor algo àquilo que é.
Quando você faz meditação, você começa a reconhecer os vários pontos de vista que traz consigo e você pode se livrar deles. Mas com a mesma velocidade que você se livra deles, você irá substituí-los por outros. É como a crença. A maioria das pessoas não se liberta de uma crença sem agarrar uma outra crença. “Essa é melhor, então agora vou ficar com essa.” No entanto, questionar quem está sustentando as crenças é muito mais eficiente do que questionar cada crença inútil ao longo do percurso, porque você acaba com uma crença e logo surge outra. É algo parecido com arrancar erva daninha.
Meu melhor amigo, quando eu era criança, numa casa em frente, tinha um quintal com um gramado onde havia, na verdade, mais capim do que grama. O pai dele nos pagava vinte e cinco centavos a hora – vejam vocês, isso a trinta anos atrás! – para arrancar o capim. Mas a gente sabia que vinte e cinco centavos a hora não era lá muito dinheiro. No entanto, uma hora de trabalho já dava para uma barra de chocolate. No início, a gente ficava sentado no quintal, capinando com uma faquinha de mesa. Mas isso era muito difícil e então passamos a arrancar o capim com as mãos. A gente arrancava só a parte de cima do capim. Tinha mais capim do que grama, e a gente ficava arrancando capim o dia todo. Uma vez no verão a gente ficou arrancando capim durante duas semanas, porque a gente decidiu que queria mesmo era o dinheiro. Quando finalmente, uma semana depois, a gente conseguiu chegar do outro lado do gramado, aquele primeiro capim que a gente havia arrancado já estava crescendo de novo. Assim é com as crenças. Você arranca uma crença, mas se você não chega à raiz dela, se você não arranca aquilo que sustenta a crença, novas crenças continuarão aparecendo para roubar a sua atenção. Essa é uma boa maneira de garantir um emprego para si mesmo. O ego pode manter-se em atividade desse modo.
Portanto, a questão é arrancar pela raiz aquilo que está sustentando as crenças. Quem está sustentando essa crença? Quem está se debatendo? Quem não está se debatendo? Quando você arranca pela raiz aquilo que está unindo a estrutura, então toda a estrutura desaba. Se eu arranco a raiz, então toda a estrutura conceitual desaba. Se você deixa um pedaço da raiz, ela volta e começa a crescer novamente.
Estudante: Às vezes, eu compreendo a minha visão de mundo como uma ilusão e sinto uma inteireza. Mas depois me pego novamente na separatividade. O que é preciso fazer para cessar esse vai e vem, para passar de um momento ocasional de percepção para a percepção constante?
Adyashanti: Dissolva quem faz a pergunta “Quando irá passar de um momento ocasional de percepção para a percepção constante?” Você percebe quem está fazendo a pergunta? Quem está perguntando é um movimento específico do pensamento.
Tudo é apenas um envoltório conceitual. Há um provérbio no Zen que diz: “Em um minuto você é Buda; no minuto seguinte, um ser senciente”. Às vezes, você é Buda. Às vezes, você é um ser senciente. Mas isso é sempre Buda, porque ambos são máscaras. O ser senciente é uma máscara. Buda também é uma máscara. Quando as máscaras caem, tanto o ser senciente como o Buda são o mesmo.
Estudante: E você pode chamá-lo de qualquer coisa.
Adyashanti: Você pode chamá-lo de qualquer coisa. É a não-máscara, é o vazio. Como disse Huang Po: “Estar manifestado como Buda não é mais nem menos importante do que estar manifestado como ser senciente”.
Estudante: Eu noto uma tendência para me apegar a essa impressão de queda livre.
Adyashanti: Estar apegado à impressão de queda livre ainda é estar apegado. E isso é a causa do sofrimento, porque não haverá sempre impressões agradáveis. As impressões mudam. No ato de enxergar uma impressão, existe o ato de liberar-se dessa impressão. Acontece um relaxamento espontâneo do processo de retenção da experiência, mesmo que ela seja maravilhosa. Vamos além da percepção, além da máscara do ego, além da máscara de Buda. Quando, diante da vacuidade, afastamos a máscara densa e vamos além, só existe o grandioso “Ahhhhh”.
Estudante 2: Quando você fala sobre não ter conceitos nem ilusões, e sobre perceber a vacuidade, parece que isso é um ponto que está além do amor. Pela minha experiência, esse amor surge nesse despertamento e parece que ele é um campo energético entre a ilusão e a vacuidade. Você irá falar sobre o amor e como ele se ajusta ao despertamento? Por que será que com tanto amor dentro de nós, nós humanos raramente nos sentimos amados?
Adyashanti: O primeiro movimento da vacuidade é o amor. Esse é também o primeiro chamado, que é a mesma coisa, o mesmo amor. Isso conduz a todo esse universo, à criatividade dessa existência, ao parir dessa existência. É como uma mãe. Tudo nasce dessa indescritível sensação de amor e beleza. É a primeira expressão da não-existência. Nesse sentido, o amor é sempre o portal, a entrada para um estado mais profundo e verdadeiro. Eu penso que a razão pela qual os seres humanos não sentem amor é porque eles estão desconectados de si mesmos, da própria fonte, que é o amor.
Todo esse mecanismo humano é simplesmente o amor encarnado, a criatividade encarnada. O ego não consegue enxergar isso. Ele se acha incapaz de acolher esse tipo de amor. Somente a nossa verdadeira natureza consegue acolher esse amor, sem ser dominada por ele. Por isso, normalmente, nas comunidades espirituais o instrutor não é simplesmente amado, mas adorado, porque o ego não consegue se apropriar da intensidade desse amor. As pessoas podem até sentir esse amor nelas mesmas, mas como isso parece ser demais para o ego, o amor é projetado no instrutor.
Nós tendemos a projetar em outro lugar a nossa própria verdade, a nossa própria beleza. Nós projetamos a nossa própria beleza. Esse é o acordo inconsciente que se faz. “Eu, de alguma forma, por minha decisão ou ignorância, decido ser alguém à parte. Mas, na verdade, já que eu não uma pessoa à parte, eu tenho que comunicar a minha Verdade. E já que eu não consigo me livrar da Verdade – porque ela não vai simplesmente desaparecer do universo – eu tenho que colocá-la em algum outro lugar. Se eu for fingir que sou essa pessoa limitada, eu tenho que entregar a minha divindade aos cuidados de uma outra pessoa”. Então, a minha divindade vai para Jesus, para o Buda ou para o meu instrutor espiritual. ”Alguém tem que cuidar da minha divindade, enquanto eu estiver ocupado sendo eu mesmo”. Essa é a projeção.
Eu penso que quando existe amor, no sentido mais verdadeiro, nós nos apaixonamos pelo nosso próprio Eu, nos apaixonamos por aquilo que o ego não consegue cuidar. Quando ultrapassamos essa atividade de ser alguém à parte, retornamos à nossa verdadeira natureza e tomamos posse do nosso Eu, para que possamos de fato olhar para o Buda – ou para uma figura sagrada ou o nosso próprio instrutor – e saber de modo direto e absoluto, ”Isto sou eu. É idêntico”. Só podemos fazer isso quando houvermos, de fato, resgatado essa riqueza para nós mesmos de modo total e completo, e enxergado essa riqueza como o nosso próprio Eu.
Então existe um grande amor e apreço. É isso que sinto pelo meu instrutor. É algo assim: “Obrigado por cuidar da minha projeção. Obrigado por cuidar da minha iluminação enquanto eu estava ocupado, fingindo que eu não era iluminado. Obrigado por não reter, por não apropriar-se da minha iluminação, por restituí-la a mim. Sinto tanto amor e gratidão nesse momento por tudo isso. Obrigado por me mostrar isso.”
Há um provérbio no Zen que diz: “Quando a realização é profunda, todo o seu ser começa a dançar.” Você consegue ter a experiência da vacuidade e isso pode ser o vazio do vazio. A expressão que se usa é “vazio com frescor”. Só quando é vacuidade verdadeira que o seu ser começa a dançar. O vazio passa até pelo seu corpo físico. Tudo ganha vida nova. Você começa a dançar, o vazio começa a dançar. Daí nos aprofundamos mais nesse amor, nessa dança, nessa alegria. Depois isso se acomoda; ainda é amor, dança, alegria, mas passa a ser algo tranquilo e muito penetrante. É um amor e uma paz que simplesmente vai se aprofundando.
Quando o despertamento acontece, o coração precisa se abrir. Eu penso que para que a realização seja completa, ela precisa atingir três níveis – a cabeça, o coração e o abdômen –, porque você pode ter uma mente clara, iluminada, que você vai conhecer de modo profundo, mas o seu ser não vai dançar. Quando o coração começa a se abrir, assim como a mente, o seu ser começa a dançar. Tudo ganha vida. E quando o abdômen se abre por inteiro, existe uma estabilidade muito profunda, insondável, onde essa abertura - que é você - simplesmente deixa de existir e torna-se transparência. Torna-se o absoluto. Isto é você.
Existe a expressão “vazio sólido”. Na mente, o vazio não é tão sólido. Ele parece muito com o espaço, é etéreo; isso é a iluminação no nível da mente. A iluminação no nível do coração é vivacidade, é a impressão de que tudo em mim está dançando. A iluminação no nível do abdômen é o vazio semelhante ao vazio da mente, só que parece uma montanha, uma montanha transparente. Tudo isso são expressões da Verdade no ser humano.
Estudante 2: Essa é a coisa mais linda que eu já ouvi. Eu penso nos grupos espirituais que ultrapassam o amor, mas que não conseguem operar a partir daí. Eles não têm esse ponto central e parecem muito áridos. Eu sempre pergunto como pode haver despertamento sem isso.
Adyashanti: Como meu instrutor dizia: “É muito fácil a espiritualidade virar só uma conversa.” Pode haver um certo nível de iluminação da mente, de clareza total – um despertamento como espaço ou espacialidade – que pode perdurar. Mas mesmo assim podem existir, e com muita freqûencia existem, formas muito sutis do eu individual se proteger. Quando se chega abaixo do pescoço, a autoproteção se torna um problema imenso para muitas pessoas. Uma coisa é mudar a mente, não ter mente alguma ou ser nada, mas quando isso começa a acontecer dentro do coração, é porque está chegando muito perto da fonte. Essa abertura é de uma outra ordem de intimidade. Eu penso que algumas comunidades espirituais não conseguem chegar a esse ponto porque algumas pessoas são muito iluminadas só no nível da mente e em nenhum outro.
Estudante 2: O que me impressiona é que foi por esse motivo que eu cheguei até você. Com alguns instrutores espirituais pode haver muitas experiências e muitos exercícios para a pessoa entrar em estados alterados ou samadhi. Mas o que você realmente acrescenta, e que muitos instrutores não fazem, é a plena incorporação da existência nesse momento. É aí que precisa entrar o amor. Se a sua vida espiritual se resume a entrar em estados alterados, você não vivencia a existência porque você acha que não precisa disso. Você se ilude com a ideia de que aquilo é tudo o que existe ou que aquilo é suficiente.
Adyashanti: À medida que o despertamento vai descendo, você penetra em áreas totalmente diferentes do seu ser que irão desaparecer. Quando você desce abaixo do pescoço, você cai e se suja – se é que você sabe o que eu quero dizer. É como se fosse o momento espiritual de você colocar as suas luvas. Em um nível emocional muito profundo, acontece uma intensa constatação humana, necessária para se chegar ali de fato. Se ficarmos presos, como se diz, o estado espiritual pode realmente ser usado para nos proteger de ter que morrer de forma mais completa. Assim, os estados de enlevo espiritual são alguns dos esconderijos mais eficazes, porque eles podem aparentar ser muito aprazíveis e completos. E lá está você tendo essas incríveis experiências, mas você ainda continua chutando o seu cachorro quando chega em casa do trabalho.
As diferentes tradições espirituais parecem incorporar diferentes aspectos da realização. O Zen incorpora o nível do abdômen. Isso é o que ele visa. No Zen, atingir a verdadeira profundidade desse nível chama-se A Grande Morte, porque acontece a libertação total de tudo, inclusive do apego ao coração. Do mesmo modo que podemos estar apegados à iluminação intelectual, também podemos estar apegados à iluminação do coração, motivo pelo qual no Zen se ouve tanto falar do vazio. Essa é a montanha do vazio que, na verdade, é a substância da existência.
Adyashanti: Dissolva quem faz a pergunta “Quando irá passar de um momento ocasional de percepção para a percepção constante?” Você percebe quem está fazendo a pergunta? Quem está perguntando é um movimento específico do pensamento.
Tudo é apenas um envoltório conceitual. Há um provérbio no Zen que diz: “Em um minuto você é Buda; no minuto seguinte, um ser senciente”. Às vezes, você é Buda. Às vezes, você é um ser senciente. Mas isso é sempre Buda, porque ambos são máscaras. O ser senciente é uma máscara. Buda também é uma máscara. Quando as máscaras caem, tanto o ser senciente como o Buda são o mesmo.
Estudante: E você pode chamá-lo de qualquer coisa.
Adyashanti: Você pode chamá-lo de qualquer coisa. É a não-máscara, é o vazio. Como disse Huang Po: “Estar manifestado como Buda não é mais nem menos importante do que estar manifestado como ser senciente”.
Estudante: Eu noto uma tendência para me apegar a essa impressão de queda livre.
Adyashanti: Estar apegado à impressão de queda livre ainda é estar apegado. E isso é a causa do sofrimento, porque não haverá sempre impressões agradáveis. As impressões mudam. No ato de enxergar uma impressão, existe o ato de liberar-se dessa impressão. Acontece um relaxamento espontâneo do processo de retenção da experiência, mesmo que ela seja maravilhosa. Vamos além da percepção, além da máscara do ego, além da máscara de Buda. Quando, diante da vacuidade, afastamos a máscara densa e vamos além, só existe o grandioso “Ahhhhh”.
Estudante 2: Quando você fala sobre não ter conceitos nem ilusões, e sobre perceber a vacuidade, parece que isso é um ponto que está além do amor. Pela minha experiência, esse amor surge nesse despertamento e parece que ele é um campo energético entre a ilusão e a vacuidade. Você irá falar sobre o amor e como ele se ajusta ao despertamento? Por que será que com tanto amor dentro de nós, nós humanos raramente nos sentimos amados?
Adyashanti: O primeiro movimento da vacuidade é o amor. Esse é também o primeiro chamado, que é a mesma coisa, o mesmo amor. Isso conduz a todo esse universo, à criatividade dessa existência, ao parir dessa existência. É como uma mãe. Tudo nasce dessa indescritível sensação de amor e beleza. É a primeira expressão da não-existência. Nesse sentido, o amor é sempre o portal, a entrada para um estado mais profundo e verdadeiro. Eu penso que a razão pela qual os seres humanos não sentem amor é porque eles estão desconectados de si mesmos, da própria fonte, que é o amor.
Todo esse mecanismo humano é simplesmente o amor encarnado, a criatividade encarnada. O ego não consegue enxergar isso. Ele se acha incapaz de acolher esse tipo de amor. Somente a nossa verdadeira natureza consegue acolher esse amor, sem ser dominada por ele. Por isso, normalmente, nas comunidades espirituais o instrutor não é simplesmente amado, mas adorado, porque o ego não consegue se apropriar da intensidade desse amor. As pessoas podem até sentir esse amor nelas mesmas, mas como isso parece ser demais para o ego, o amor é projetado no instrutor.
Nós tendemos a projetar em outro lugar a nossa própria verdade, a nossa própria beleza. Nós projetamos a nossa própria beleza. Esse é o acordo inconsciente que se faz. “Eu, de alguma forma, por minha decisão ou ignorância, decido ser alguém à parte. Mas, na verdade, já que eu não uma pessoa à parte, eu tenho que comunicar a minha Verdade. E já que eu não consigo me livrar da Verdade – porque ela não vai simplesmente desaparecer do universo – eu tenho que colocá-la em algum outro lugar. Se eu for fingir que sou essa pessoa limitada, eu tenho que entregar a minha divindade aos cuidados de uma outra pessoa”. Então, a minha divindade vai para Jesus, para o Buda ou para o meu instrutor espiritual. ”Alguém tem que cuidar da minha divindade, enquanto eu estiver ocupado sendo eu mesmo”. Essa é a projeção.
Eu penso que quando existe amor, no sentido mais verdadeiro, nós nos apaixonamos pelo nosso próprio Eu, nos apaixonamos por aquilo que o ego não consegue cuidar. Quando ultrapassamos essa atividade de ser alguém à parte, retornamos à nossa verdadeira natureza e tomamos posse do nosso Eu, para que possamos de fato olhar para o Buda – ou para uma figura sagrada ou o nosso próprio instrutor – e saber de modo direto e absoluto, ”Isto sou eu. É idêntico”. Só podemos fazer isso quando houvermos, de fato, resgatado essa riqueza para nós mesmos de modo total e completo, e enxergado essa riqueza como o nosso próprio Eu.
Então existe um grande amor e apreço. É isso que sinto pelo meu instrutor. É algo assim: “Obrigado por cuidar da minha projeção. Obrigado por cuidar da minha iluminação enquanto eu estava ocupado, fingindo que eu não era iluminado. Obrigado por não reter, por não apropriar-se da minha iluminação, por restituí-la a mim. Sinto tanto amor e gratidão nesse momento por tudo isso. Obrigado por me mostrar isso.”
Há um provérbio no Zen que diz: “Quando a realização é profunda, todo o seu ser começa a dançar.” Você consegue ter a experiência da vacuidade e isso pode ser o vazio do vazio. A expressão que se usa é “vazio com frescor”. Só quando é vacuidade verdadeira que o seu ser começa a dançar. O vazio passa até pelo seu corpo físico. Tudo ganha vida nova. Você começa a dançar, o vazio começa a dançar. Daí nos aprofundamos mais nesse amor, nessa dança, nessa alegria. Depois isso se acomoda; ainda é amor, dança, alegria, mas passa a ser algo tranquilo e muito penetrante. É um amor e uma paz que simplesmente vai se aprofundando.
Quando o despertamento acontece, o coração precisa se abrir. Eu penso que para que a realização seja completa, ela precisa atingir três níveis – a cabeça, o coração e o abdômen –, porque você pode ter uma mente clara, iluminada, que você vai conhecer de modo profundo, mas o seu ser não vai dançar. Quando o coração começa a se abrir, assim como a mente, o seu ser começa a dançar. Tudo ganha vida. E quando o abdômen se abre por inteiro, existe uma estabilidade muito profunda, insondável, onde essa abertura - que é você - simplesmente deixa de existir e torna-se transparência. Torna-se o absoluto. Isto é você.
Existe a expressão “vazio sólido”. Na mente, o vazio não é tão sólido. Ele parece muito com o espaço, é etéreo; isso é a iluminação no nível da mente. A iluminação no nível do coração é vivacidade, é a impressão de que tudo em mim está dançando. A iluminação no nível do abdômen é o vazio semelhante ao vazio da mente, só que parece uma montanha, uma montanha transparente. Tudo isso são expressões da Verdade no ser humano.
Estudante 2: Essa é a coisa mais linda que eu já ouvi. Eu penso nos grupos espirituais que ultrapassam o amor, mas que não conseguem operar a partir daí. Eles não têm esse ponto central e parecem muito áridos. Eu sempre pergunto como pode haver despertamento sem isso.
Adyashanti: Como meu instrutor dizia: “É muito fácil a espiritualidade virar só uma conversa.” Pode haver um certo nível de iluminação da mente, de clareza total – um despertamento como espaço ou espacialidade – que pode perdurar. Mas mesmo assim podem existir, e com muita freqûencia existem, formas muito sutis do eu individual se proteger. Quando se chega abaixo do pescoço, a autoproteção se torna um problema imenso para muitas pessoas. Uma coisa é mudar a mente, não ter mente alguma ou ser nada, mas quando isso começa a acontecer dentro do coração, é porque está chegando muito perto da fonte. Essa abertura é de uma outra ordem de intimidade. Eu penso que algumas comunidades espirituais não conseguem chegar a esse ponto porque algumas pessoas são muito iluminadas só no nível da mente e em nenhum outro.
Estudante 2: O que me impressiona é que foi por esse motivo que eu cheguei até você. Com alguns instrutores espirituais pode haver muitas experiências e muitos exercícios para a pessoa entrar em estados alterados ou samadhi. Mas o que você realmente acrescenta, e que muitos instrutores não fazem, é a plena incorporação da existência nesse momento. É aí que precisa entrar o amor. Se a sua vida espiritual se resume a entrar em estados alterados, você não vivencia a existência porque você acha que não precisa disso. Você se ilude com a ideia de que aquilo é tudo o que existe ou que aquilo é suficiente.
Adyashanti: À medida que o despertamento vai descendo, você penetra em áreas totalmente diferentes do seu ser que irão desaparecer. Quando você desce abaixo do pescoço, você cai e se suja – se é que você sabe o que eu quero dizer. É como se fosse o momento espiritual de você colocar as suas luvas. Em um nível emocional muito profundo, acontece uma intensa constatação humana, necessária para se chegar ali de fato. Se ficarmos presos, como se diz, o estado espiritual pode realmente ser usado para nos proteger de ter que morrer de forma mais completa. Assim, os estados de enlevo espiritual são alguns dos esconderijos mais eficazes, porque eles podem aparentar ser muito aprazíveis e completos. E lá está você tendo essas incríveis experiências, mas você ainda continua chutando o seu cachorro quando chega em casa do trabalho.
As diferentes tradições espirituais parecem incorporar diferentes aspectos da realização. O Zen incorpora o nível do abdômen. Isso é o que ele visa. No Zen, atingir a verdadeira profundidade desse nível chama-se A Grande Morte, porque acontece a libertação total de tudo, inclusive do apego ao coração. Do mesmo modo que podemos estar apegados à iluminação intelectual, também podemos estar apegados à iluminação do coração, motivo pelo qual no Zen se ouve tanto falar do vazio. Essa é a montanha do vazio que, na verdade, é a substância da existência.
Boulder Creek, Califórnia, 25 de outubro de 2001
ADYASHANTI. Emptiness dancing, pp. 137-148, Sounds True, Inc., Canadá: 2006, tradução Roberto Carlos de Paula. Texto selecionado para estudo em Loja realizado em 24.02.15.
"Nenhum Teósofo, do menos instruído ao mais culto, deve pretender a infalibilidade no que possa dizer ou escrever sobre questões ocultas" (Helena P. Blavatsky, DS, I, pg. 208). A esse propósito, o Conselho Mundial da Sociedade Teosófica é incisivo: "Nenhum escritor ou instrutor, a partir de H.P. Blavatsky tem qualquer autoridade para impor seus ensinamentos ou suas opiniões sobre os associados. Cada membro tem igual direito de seguir qualquer escola de pensamento, mas não tem o direito de forçar qualquer outro membro a tal escolha" (Trecho da Resolução aprovada pelo Conselho Geral da Sociedade Teosófica em 23.12.1924 e modificada em 25.12.1996.
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