quarta-feira, 10 de setembro de 2014

Profundidade

Extraído do livro “A Dança do Vazio”, de Adyashanti

A espiritualidade pode ser abordada de duas maneiras. A primeira e mais comum é através do movimento horizontal da mente. Movimento horizontal é o vai e volta da mente colhendo informações. É como se a mente chegasse até um muro todo coberto de escritos. Nesse muro há todo tipo de ensinamentos, práticas, coisas a fazer, coisas a não fazer. No geral, a mente faz apenas o movimento horizontal ao longo do muro, adquirindo e acumulando informações. Ela vai para a esquerda, depois para a direita, coletando informações, crenças, teorias, etc. Você já conheceu pessoas que a mente é assim? Elas vasculham o muro de uma ponta à outra, até embaixo – a mente fica girando no sentido horizontal, colhendo informações. Isso é o que a mente faz, e muitas pessoas fazem esse movimento horizontal de colher informações, ideias e crenças, na esperança de que isso irá ajudá-las espiritualmente. Porém, a Verdade não é uma questão de conhecimento, ela é uma questão de despertar.

E, emocionalmente, nós fazemos a mesma coisa.  Movimentamo-nos no sentido horizontal ao longo do muro, colhendo experiências. Temos experiências humanas, mundanas, fundamentais, boas e ruins, e depois, à medida que nos aventuramos pela espiritualidade, começamos a ter experiências espirituais. Tal como acontece com a mente, nós começamos a pensar: "Se eu conseguir acumular uma quantidade suficiente de experiências, isso irá significar alguma coisa. Isso irá me levar a algum lugar." Isso fará com que nós acumulemos mais experiências, e exatamente da mesma forma que a mente faz movimentos horizontais, isso faz com que nós acumulemos mais conhecimento – não liberdade, não Verdade.

Assim, a mente, o corpo e as emoções  jogam esse jogo chamado acumulação. Eles avaliam um fragmento de conhecimento conceitual contra outro fragmento de conhecimento conceitual. "Como esse fragmento se compara àquele? E como aquele fragmento se compara a esse?" Nós gostamos de comparar nossas experiências com as dos outros. "O que você  experimentou? Ah, isso eu não experimentei, mas eu já experimentei aquilo, e você? Isso é o que eu acredito, e o que você acredita?"

A mente e o corpo tendem a seguir antigos padrões, fazendo movimentos horizontais, recolhendo fatos, ensinamentos, professores, crenças e experiências.  Esse é o modo predominante de muitas pessoas viverem a vida:  viver de modo horizontal, não vertical.  Então, elas transferem esse movimento horizontal para a vida espiritual.  Não importa quanto você tenha acumulado de conhecimento e experiência de modo horizontal, mais informações não significam maior profundidade.

Assim, nesse momento, pode ser que você perceba que realmente não irá conseguir nada com as minhas palavras; tudo que a sua mente absorve e acumula como conhecimento não irá lhe trazer mais profundidade.  Nenhuma profundidade. Zero de profundidade. Nada.  Isso só irá lhe trazer mais movimento horizontal.  Só irá lhe trazer mais conhecimento. Talvez seja isso que você queira, talvez não. Mas assim que você percebe a limitação da mente, a mente se sente muito desarmada, porque ela tem muito menos a fazer.

Há um convite para você ir além do muro do conhecimento,  que não é um estado regressivo anterior à operação da mente, mas um estado transcendente que existe para além de onde a mente pode ir. Isto é o que é a espiritualidade.  Ir aonde a mente não pode ir.

Tente imaginar você de frente com uma parede.  Há uma porta nessa parede. Você abre a porta e atravessa a parede. Agora, para poder ir mais fundo, você terá de deixar para trás a parede. Se você virar para trás e continuar segurando na parede com uma das mãos e tentar mover os pés para andar, você não irá muito longe. Então, quando você quer realmente conseguir profundidade – profundidade transcendente –  você se depara com o fato de  desapegar ou não desapegar da mente.  A mente diz: "Eu vou desapegar um pouco, mas  vou enfiar um bocado desse conhecimento no meu bolso para a viagem.  Posso precisar dos meus conceitos em algum trecho da jornada".   A mente começará a fazer muitas perguntas. "Isso é seguro? Isso é sábio? Será que é burrice?".  Como se toda a sabedoria estivesse contida numa coleção de conhecimentos. Mentalmente, psicologicamente, as pessoas tendem a ficar muito inseguras quando elas ultrapassam completamente esse acúmulo de conhecimento.

A mente não consegue entender que pode existir  uma  inteligência verdadeira, uma inteligência transcendente, que não é produto nem resultado do pensamento e do entendimento  conceitual.  A mente não consegue entender que pode haver sabedoria que chega a uma pessoa não sob a forma de pensamento, não sob a forma de conhecimento adquirido e acumulado.

O verdadeiro anseio ou impulso espiritual é sempre um convite para além da mente. Por essa razão,  sempre foi dito que quando a pessoa vai a Deus, ela vai nua ou simplesmente ela não vai.  É assim para todos.  A pessoa entra livre do conhecimento acumulado ou ela fica sempre incapaz de entrar. Portanto, a mente inteligente percebe sua própria limitação e isso é uma coisa linda quando ela percebe.

Quando você pára de se apegar a todo o conhecimento, você então começa a entrar num estado diferente de ser. Você começa a penetrar numa dimensão diferente. Você penetra numa dimensão, onde a experiência no interior se torna muito tranquila. A mente ainda pode tagarelar lá no fundo -  talvez não, mas a consciência não se incomoda mais com a mente. Você não precisa parar a mente.  A sua consciência apenas ultrapassa  essa parede de conhecimento e penetra num estado de muita quietude.

Nessa quietude, você percebe que não sabe nada,  simplesmente porque você não se vira para trás, para a sua mente em busca do conhecimento adquirido. Essa quietude é um mistério para a mente. É algo desconhecido.  Quando você penetra nessa profundidade, você literalmente penetra numa experiência muito profunda disso que parece ser um grande mistério.  Então, a mente pode entrar e querer saber o que está acontecendo e começar a definir tudo, mas isso não vai trazer nenhuma profundidade. O mistério só continua se abrindo se você deixar – se você desistir do controle.

Quando você deixa para trás o conhecimento adquirido, o que você descobre é que você abandonou o seu sentido habitual de eu. Esse eu existia apenas no seu acúmulo de conhecimento e experiência.  Acontece algo muito interessante quando você deixa tudo para trás, porque literalmente você deixa para trás a sua memória. Você deixa para trás quem você pensava que era, quem você pensava que seus pais eram, e tudo mais que você pensava e acreditava. Ontem já passou. Então uma coisa muito interessante começa a ser notada: você consegue deixar tudo isso para trás e ainda assim você É.  Você É aqui e agora.  Assim, o que você É se torna ainda mais misterioso.

Quando você percebe que consegue deixar para trás todas as autodefinições e ainda assim você É, você então começa a ver que esses pensamentos não devem ser o que você é.  Em outras palavras, quem é você quando você não traz a si mesmo à existência? Quem é você quando você desiste de todos os pensamentos, mesmo aqueles que você não deve questionar, por exemplo: "Eu sou um ser humano. Eu sou uma mulher. Eu sou um homem. Eu sou filho ou filha de alguém."  Você começa a ver que quando você não traz a si mesmo à existência, quem você pensava ser literalmente não existe mais.  Se esse "você" pode desaparecer dessa maneira, e reaparecer assim que você traz a si mesmo à existência, quanto de realidade esse "você" possui?

Nesse momento de reconhecimento, você já começa a se movimentar para além do muro do conhecimento acumulado.  Então, se você não redefine esse momento ou o empacota num conceito, mais uma vez trazendo a si mesmo à existência, o seu verdadeiro estado de ser começa a se mostrar a si próprio. O que você realmente é começa a despertar. O verdadeiro Eu sou é  incrivelmente vazio.  É totalmente livre de tudo o que você pensava que era.   O verdadeiro Eu sou não tem qualquer limitação. Não tem nenhuma definição. Qualquer definição seria um desserviço para o que você é. Tudo o que resta é a consciência, mas nem isso é, porque consciência é apenas uma palavra.

Quando você enxerga o que você realmente é, conceitos não se aplicam mais. Você é totalmente vazio.  Só existe a consciência. Não há criança interior, não há adulto. Nenhuma  identidade existe até que você a traga à existência. A consciência pode olhar para baixo e ver que existe um corpo, mas isso não é a origem do problema de ninguém. O problema é o que você adiciona a isso na sua mente.

Nessa vacuidade você começa a provar da experiência de ser.  Isto é ser, antes de você ser algo ou alguém. E este mistério de ser é o que está desperto e vivo.  Ele é a única coisa que não precisa da mente para evocá-lo à existência. Você não tem que pensar de maneira alguma para ser esse despertar. Tudo que diz respeito a você muda, exceto esse fato único da consciência.  O corpo muda. A mente muda.  Os pensamentos mudam, e muito mais rapidamente do que as pessoas gostariam. E não importa quanto conhecimento você adquire, esse conhecimento não irá lhe trazer aqui mais rápido.  Ser é a única constante. Isso é o que está sempre desperto.

Assim, quando você retrocede ao conhecimento, a mente possui todo o tipo de ideias sobre o que deve ser a sua verdadeira natureza porque você leu tanto sobre isso, ouviu tantos professores espirituais falarem sobre isso, e há toda uma mitologia mística criada em torno da Verdade.   É claro que é um choque perceber que não é isso. Tudo o que você pensa que você é, não é. Mesmo que esse conceito  seja muito espiritual, místico, ou de outro mundo, você não é esse conceito.

Desapegar do conhecimento acumulado ajuda na mudança de identidade de um eu-mesmo para um nada-mesmo.  Quando isso acontece, chama-se despertar espiritual.  Mas isso não significa que você não pode usar o seu conhecimento.  O conhecimento ainda está lá, quando você precisar. Você pode mergulhar nele novamente para dizer como operar o computador e para todo tipo de coisas úteis.  Nada se perde, exceto a sua falsa identidade.  Você não se torna um idiota. Você não esquece como amarrar o cadarço dos sapatos, porque você percebe que você não era quem você pensava que fosse. Mas a mente tem medo disso. A maior barreira para a percepção são os seus pensamentos sobre isso, porque os pensamentos irão criar imagens do estado desperto, e essas imagens pertencem apenas ao conhecimento acumulado.  Não importa qual imagem você tenha do seu verdadeiro Eu, essa imagem não pode ser a Verdade. Quando você enxerga isso, fica fácil reconhecer por experiência o que existe aqui.  Apenas o que existe aqui – eterna consciência, puro espírito.

Quando você percebe isso profundamente, não com a mente ou através da lógica dedutiva, mas através do despertar direto, então tudo o mais se torna bastante simples. Quando o seu mundo de conhecimento conceitual é colocado no seu devido lugar, ele é transcendido. Você vê que você é eterna consciência,  que aparece agora como homem ou mulher, como este ou aquele personagem. Mas, como todo bom ator, você sabe que você não é o que você está aparentando ser.  Tudo o que existe é consciência aparentando ser, Deus aparentando ser,  Eu aparentando ser, espírito aparentando ser. Buda chamou isso de não-eu. Quando você vê isso, você enxerga a Unidade. Há somente Deus. Isso é tudo o que existe:  Deus aparentando ser o chão, o ser humano, a parede, a cadeira.

Nenhum conhecimento, nenhuma afirmação sobre a Verdade toca o que é eterno, o que você realmente é.  Nenhuma afirmação sobre como alcançar isso tampouco é verdadeira, porque o que faz uma pessoa alcançar isso não faz outra pessoa alcançar o mesmo. Uma mente que gosta de procurar o único e verdadeiro caminho não pode encontrá-lo. É claro que a mente não gosta disso. "Nenhum caminho correto? Nada que se possa dizer ou ler que, em última instância, pode ser verdade? O ser mais iluminado não pode falar a Verdade?"

Não.  Isso nunca foi feito e jamais será.  A única coisa que você pode fazer é colocar uma seta no muro que diz: "Olhe naquela direção."  A seta espiritual falsa é aquela que aponta para o próprio muro e diz: "Olhe nessa direção." Uma seta verdadeira é aquela que aponta para além do muro dos conceitos.

As setas podem ser mais ou menos verdadeiras, mas não importa o que a seta diga, não importa como a seta diz para se chegar lá, ela nada diz sobre o que está além. Nada. Porque quando você está além, quando você está sendo o que você é, nada mais se aplica. É por isso que muitos dos grandes mestres espirituais disseram que não há nada a saber.  Para ser livre, para ser iluminado, não há absolutamente nada a saber, e não há iluminação enquanto você achar que sabe alguma coisa. Quando você sabe absolutamente que você não sabe nada e não há absolutamente nada a saber, a esse estado chama-se iluminação, porque tudo o que existe é ser. Quando existe a Unidade, sobre quem o Uno irá saber?  O Uno só sabe: "Eu sou isso. Eu sou aquilo."  Como diz a Bíblia: "EU SOU O QUE EU SOU". Este é o verdadeiro conhecimento desperto. Todos os outros conhecimentos são secundários.

Conhecimento que é usado para uma determinada finalidade ou propósito é estritamente utilitário. Quando você começa a ver isso, você para de procurar a Verdade em qualquer coisa que você conheça. Em vez disso, você procura a Verdade naquilo que você É, porque quando você descobre o que você é, você descobre também o que tudo o mais é. Tudo é um. Você vê que não há nada a saber e o seu foco de investigação muda do pensamento para o estado de ser.

Todos já experimentaram a sabedoria transcendente irromper dentro da mente. Quando você assola o cérebro com um problema por um longo tempo e, depois, por alguma razão, você pára de lutar, de repente acontece um "Aha! É isso!"  De onde isso vem?  A sabedoria irrompeu. Pode ser algo realmente insignificante, corriqueiro.  Você pode registrar na mente como um "Aha!", mas isso não é produto do pensamento.  Isso vem de outro lugar, isso vem do ser. Então, o ser tem muita sabedoria. É um choque porque não estamos acostumados a operar a partir dessa sabedoria, que parece irromper só de vez em quando. Mas, na verdade, esse seu estado de ser opera dessa forma o tempo todo.

Muitas coisas são relativamente verdadeiras, mas nada que surge da mente é absolutamente verdadeiro. Que alívio é para a mente quando ela não mais tem que lutar, e toda a sua orientação, espiritualmente falando, movimenta-se do saber para o ser.

Palo Alto, Califórnia, 28 março, 2001


ADYASHANTI.  Emptiness dancing, pp. 93-102, Sounds True, Inc., Canada:  2006, tradução Roberto Carlos de Paula.  Texto selecionado para estudo em Loja realizado em  09.09.14.

"Nenhum Teósofo, do menos instruído ao mais culto, deve pretender a infalibilidade no que possa dizer ou escrever sobre questões ocultas" (Helena P. Blavatsky, DS, I, pg. 208). A esse propósito, o Conselho Mundial da Sociedade Teosófica é incisivo: "Nenhum escritor ou instrutor, a partir de H.P. Blavatsky tem qualquer autoridade para impor seus ensinamentos ou suas opiniões sobre os associados. Cada membro tem igual direito de seguir qualquer escola de pensamento, mas não tem o direito de forçar qualquer outro membro a tal escolha" (Trecho da Resolução aprovada pelo Conselho Geral da Sociedade Teosófica em 23.12.1924 e modificada em 25.12.1996.

Nenhum comentário: