P: Krishnaji, em um nível, seu ensinamento é muito materialista, porque se nega a aceitar o que não tenha um ponto de referência. Está baseado em “o que é”. Você inclusive foi tão longe a ponto de dizer que a consciência são as células cerebrais, e que não há outra coisa. E o pensamento é matéria, e nada a mais. Agora, nestes termos, qual é sua atitude em relação a Deus?
Krishnamurti: Eu não sei o que você entende por materialista, e o que entende por Deus.
P: Você disse que o pensamento é matéria, que as próprias células cerebrais são a consciência. Pois bem, estas coisas são materiais, mensuráveis, e nesse sentido sua posição seria parte da posição materialista, dentro da tradição dos ‘Locayatas”. Que lugar que ocupa Deus nos termos de seu ensinamento? Deus é matéria?
Krishnamurti: Você entende claramente a palavra “material”?
P: Material é aquilo que pode medir-se.
F: Não há tal coisa como o material, ‘P’.
P: O cérebro é matéria.
F: Não, é energia. Tudo é energia, mas essa energia não é observável. Você pode ver somente os efeitos dessa energia, aos quais chama “matéria”. Os efeitos da energia aparecem como matéria.
D: Quando ela disse matéria, provavelmente quer significar energia. Energia e matéria são conversíveis entre si, mas continuam sendo mensuráveis.
Krishnamurti: Ou seja, você disse que a matéria é energia e que a energia é matéria. Não se pode separá-las e dizer: isto é energia pura e isto é matéria pura.
D: O material é a expressão ou aparência da energia.
F: O que chamamos matéria não é senão energia. Não é nada mais que a energia apreendida pelos sentidos da percepção. Não há tal coisa como matéria. É apenas uma maneira de falar.
P: Veja, Krishnaji, se investigarmos qualquer aspecto de seu ensinamento, ele está baseado no observável. Os instrumentos para ouvir, para ver, estão dentro do campo da captação sensorial. Ainda quando você fala de não nomear, o que é observável o é através dos instrumentos do ver, do escutar. Os instrumentos dos sentidos são os únicos que temos para observar.
Krishnamurti: Nós conhecemos o ver sensório, o ouvir, o tocar sensório, e o intelecto que é parte de toda a estrutura. Qual é a pergunta?
P: Nesse sentido, o ensinamento é materialista em oposição ao metafísico. Sua posição é uma posição materialista.
F: Se quisermos nos ater aos fatos, o único instrumento que temos é o cérebro. Agora, é o cérebro tudo, ou é um instrumento nas mãos de alguma outra coisa? Se você diz que só o cérebro existe, essa seria uma posição materialista. Se diz que o instrumento é material, então o ensinamento não é materialista.
P: A posição tântrica e a da antiga alquimia são, num sentido, similares a posição de Krishnaji. Tudo há de ser observado. Nada deve ser aceito, que não haja sido visto com os olhos daquele que vê. Vendo isto, agora pergunto: qual é sua visão de Deus? Eu sinto que esta é uma pergunta legítima.
F: Você pode explicar o que é Deus?
Krishnamurti: O que você entende por Deus? Estivemos explicando a energia e a matéria, e agora você pergunta o que entendemos por Deus. Eu nunca emprego a palavra “Deus” para indicar algo que não seja Deus. O que o pensamento inventou não é Deus. Se ele foi inventado pelo pensamento, segue estando dentro do campo do tempo, dentro do campo do material.
P: O pensamento diz que eu não posso ir mais longe.
Krishnamurti: Mais ele pode inventar a Deus devido a que não pode ir mais longe. O pensamento conhece suas limitações, por isso trata de inventar o ilimitado, ao que chama Deus. A situação é essa.
P: Quando o pensamento vê suas limitações, ainda é consciente de uma existência que está mais além dele mesmo.
Krishnamurti: O pensamento a inventou. Só é possível ir mais além quando o pensamento toca seu fim.
P: Ver as limitações do pensamento não é conhecer o pensamento.
Krishnamurti: Portanto, devemos investigar o pensamento e não Deus.
D: Quando o pensamento vê sua própria limitação, praticamente a desmascara.
Krishnamurti: O pensamento se dá conta de que é limitado, ou é o pensador quem se dá conta de que o pensamento é limitado? Veja o ponto. É o pensador – que é o produto do pensamento – o que se dá conta disto?
P: Porque você traça esta distinção?
Krishnamurti: O pensamento criou o pensador. Se o pensamento não existisse, não haveria um pensador. É o pensador, que observando as limitações diz: "eu sou limitado”, ou o pensamento mesmo se dá conta de suas limitações, o que implica duas posições diferentes? Sejamos claros em tudo isto. Estamos explorando. Aí estão os dois, o pensamento e o pensador; o pensador, observando o pensamento, vê mediante o raciocínio – que é material, que é energia – que a energia é limitada. O pensador pensa isto no reino do pensamento.
D: Quando o pensador disse que o pensamento é limitado, ambos – pensamento e pensador – se tornam sinais de interrogação.
Krishnamurti: Não, ainda não. O pensamento é memória, é a resposta do conhecimento. O pensamento produziu esta coisa chamada o pensador. E pensador se separa então do pensamento; ao menos pensa que está separado do pensamento. O pensador, olhando o intelecto, a capacidade de raciocínio, vê que esta é muito, muito limitada. Portanto o pensador condena a razão; o pensador diz que o pensamento é muito limitado, o que é condenar. Então, diz que deve haver algo mais que o pensamento, algo fora deste campo limitado. Isso é o que fazemos. Agora tomamos as coisas tais como são. É o pensador o que pensa que o pensamento é limitado, ou o pensamento mesmo se dá conta de que é limitado? Não sei se você vê a diferença.
F: O pensamento é anterior ao pensador.
P: O pensamento pode terminar, mas como pode o pensamento sentir que é limitado?
Krishnamurti: Esse é o ponto. O pensador vê que é limitado, ou é o pensamento o que diz: “é impossível ir mais além”? Vê o problema?
F: Por que você separa o pensador do pensamento? Há muitos pensamentos, entre os quais o pensador é também outro pensamento. O pensador é o que guia, o que ajuda, o que censura, ele é a coisa que mais domina.
Krishnamurti: O pensamento passou por tudo isto, e estabeleceu um centro do qual opera o observador; e o observador, olhando o pensamento, diz que o pensamento é limitado.
D: De fato, ele só pode dizer: “não sei”.
Krishnamurti: Ele não diz isso. Você está introduzindo um fato não observável. Em primeiro lugar, o pensamento, que é a resposta do conhecimento, não se deu conta de que é muito limitado. O que fez com o fim de ter segurança, é reunir vários pensamentos que se converteram no observador, o pensador, o experimentador. Então formulamos a pergunta: o pensador se dá conta de que é limitado. Ou é o próprio pensamento que se dá conta disso? São coisas completamente diferentes.
F: Nós só conhecemos um estado onde o pensamento pensa pensamentos.
Krishnamurti: Isso é tudo o que conhecemos. Portanto, o pensador diz invariavelmente que devemos ir mais além do pensamento, e assim pergunta: “Alguém pode anular a mente? Existe Deus?”
F: Você está outorgando existência ao pensador em lugar do pensamento.
Krishnamurti: O pensador está modificando, acrescentando. O pensador não é uma entidade permanente, nem tão pouco o é o pensamento. Mas o pensador acomoda, modifica todo o tempo; isso é importante, eu posso estar equivocado. É importante descobrir se o pensador vê que é limitado ou se é o pensamento como idéia – sendo a idéia, pensamento organizado –, o que pensa que é limitado.Bem, quem é que diz? Se o pensador diz que é limitado, então o pensador diz que deve haver algo mais; diz que deve haver Deus, que deve haver algo mais além do pensar, correto? Se o pensamento mesmo se dá conta de que não pode ir mais além de sua prisão, mais além de suas arraigadas células cerebrais – as células cerebrais como o material, como a raiz do pensar – se o pensamento se dá conta disso, então, o que ocorre?
P: Veja, senhor, essa é toda a questão. Se em seu ensinamento você não passasse deste ponto, eu compreenderia. Se você deixasse as coisas aí, neste ponto em que o próprio pensamento vê isto, em que as próprias células cerebrais o vêm, e permanecesse nesse ponto, então haveria uma total coerência e lógica; mas você sempre está se movendo, vai mais além disso e aí não é possível usar palavra alguma. Portanto, chame-o como queira, mas foi introduzido o sentimento de Deus.
Krishnamurti: Não aceitarei a palavra “Deus”.
P: Por meio da razão, da lógica, você nos conduz até um ponto. Mas não o deixa aí.
Krishnamurti: Certamente que não.
P: Esse é o verdadeiro paradoxo.
Krishnamurti: Recuso aceitá-lo como um paradoxo.
F: A matéria de algo e seu significado não são intercambiáveis. ‘P’ está misturando ambas as coisas.
Krishnamurti: O que ela disse é bastante simples: “O pensador e o pensamento: nós podemos ver toda a lógica dele – o que você disse – mas você não o deixa aí. Segue adiante”.
P: Penetra numa abstração. Eu digo que o pensamento e o pensador são essencialmente uma mesma coisa mas que o homem o separou para sua própria proteção, permanência, segurança. Nós perguntamos: o pensador que pensa pensamentos é limitado e por isso postula algo que esteja mais além porque deve ter segurança? Ou é o pensamento mesmo o que diz que qualquer que seja o movimento, por sutil, óbvio ou racional que seja, o pensamento segue sendo limitado? Mas Krishnamurti vai mais além do que isso e penetra em abstrações.
Krishnamurti: Eu me dou conta de que o pensador e o pensamento são muito, muito limitados, e não me detenho aí. Se me detivesse, isso seria uma filosofia altamente materialista. A isso chegaram muitos intelectuais no oriente e ocidente. Mas eles estão sempre atados, e estando atados se estendem, mas permanecem amarrados a um poste constituído por suas experiências, suas crenças. Agora, o que ocorre se posso responder a pergunta acerca de se o próprio pensamento se dá conta de sua limitações? O pensamento sabendo que ele é energia, que é memória, sofrimento... percebe então que qualquer movimento do pensar é consciência e que sem o conteúdo não há consciência. O que ocorre então? Isso é observável ou não? Eu não invento a Deus.
P: Eu não digo isso. Nunca disse que você inventa Deus. Digo que até chegar a esse ponto sua posição é materialista, racional, lógica; em seguida, subitamente, você introduz outro elemento.
Krishnamurti: Não. Veja. O pensamento mesmo se dá conta – não o pensador que pensa, que é incapaz de dar-se conta e que portanto, postula uma supra-consciência, um “eu” mais elevado, Deus ou o que for –, é o próprio pensamento que adverte que qualquer movimento que faça está dentro do campo do tempo. Então, o que ocorre? O pensamento se cala por um momento – este é um fato observável, comprovável. O silêncio que advém não é o resultado da disciplina. O que ocorre, então?
P: Senhor, deixe-me fazer uma pergunta. Nesse estado prossegue o registro de todos os ruídos. O que é a máquina que registra?
Krishnamurti: O cérebro.
P: O cérebro é o material. Por tanto, esse registro continua.
Krishnamurti: Continua todo o tempo, tanto quando se é consciente como quando se é inconsciente dele.
P: Você pode não nomeá-lo, mas o sentido da existência prossegue.
Krishnamurti: Não. Você emprega a palavra “existência”, mas é o registro que prossegue. Aqui quero estabelecer a diferença.
P: Não nos afastemos. Não é que toda a existência se apague, como sucederia se o pensamento terminasse.
Krishnamurti: Ao contrário.
P: Existência: o sentido da existência, “ser”.
Krishnamurti: A vida prossegue mas sem o “eu” como o observador. A vida continua, o registro continua, a memória continua, mas o “eu” criado pelo pensamento, o “eu” que é o conteúdo da consciência, esse “eu” desaparece; obviamente, porque esse “eu” é limitado. Portanto, o pensamento – como o “eu” – diz: “eu sou limitado”. Isso não significa que o corpo não continue, mas o centro que é a atividade do “si mesmo” como o “eu”, isso não continua. E novamente ele é lógico, porque o pensamento diz: “sou limitado, não criarei o ‘eu’ que é uma limitação adicional”. O pensamento se dá conta disso, e ele desaparece.
P: Foi dito que o pensamento criando ao “eu”, é a limitação...
Krishnamurti: O pensamento cria o “eu” e o “eu” se dá conta de que é limitado; assim, o “eu” deixa de ser.
F: Quando isto ocorre, por que há de ser nomeado como “pensamento”?
Krishnamurti: Eu não estou nomeando nada. Me dou conta de que o pensamento é a resposta do passado. O "eu" está constituído pela soma de diferentes pensamentos: estes criaram o “eu” que é o passado; o “eu” é o passado, o “eu” projeta o futuro.
Bem, todo o fenômeno é um assunto muito insignificante. Isso é tudo. Qual é então a pergunta seguinte?
F: Que tem Deus a ver com este estado de desesperança?
Krishnamurti: Não é um estado de desesperança. Ao contrário, você introduziu a qualidade de desesperança porque seu pensamento disse que não pode ir mais além de si mesmo e por tanto, está desesperado. O pensamento se dá conta de que qualquer movimento que faça, segue estando dentro do campo do tempo, quer o chame desesperação, realização, prazer, temor.
P: O dar-se conta das limitações é então, um estado de desesperação.
Krishnamurti: Não, você introduz a desesperação. Eu apenas digo que a desesperação é parte do pensamento. A esperança é parte do pensamento, e esse pensamento diz que qualquer que seja o movimento que eu faça, seja desesperação, prazer, temor, apego ou desapego, é um movimento do pensar. Quando o pensamento se dá conta disso, se detém. Agora, sigamos adiante.
P: Quero perguntar-lhes algo. Você disse que a existência continua sem o “eu”. Quem é que segue adiante?
Krishnamurti: Nós nos afastamos da palavra “Deus”. [continua]
Extraído do livro Tradición y revolución, Ed. Edhasa, tradução de Eliane Zaranza, para estudo em Loja realizado em 07.06.11
"Nenhum Teósofo, do menos instruído ao mais culto, deve pretender a infalibilidade no que possa dizer ou escrever sobre questões ocultas" (Helena P. Blavatsky, DS, I, pg. 208). A esse propósito, o Conselho Mundial da Sociedade Teosófica é incisivo: "Nenhum escritor ou instrutor, a partir de H.P. Blavatsky tem qualquer autoridade para impor seus ensinamentos ou suas opiniões sobre os associados. Cada membro tem igual direito de seguir qualquer escola de pensamento, mas não tem o direito de forçar qualquer outro membro a tal escolha" (Trecho da Resolução aprovada pelo Conselho Geral da Sociedade Teosófica em 23.12.1924 e modificada em 25.12.1996.
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