quarta-feira, 13 de julho de 2011

Não Há Religião Superior à Verdade

Numa frase bem conhecida dos Upanishads diz-se que a mente é dual em sua natureza. Uma parte dela é impura, pois tende a viver na ilusão. A outra, chamada de "mente pura", procura o que é real e verdadeiro. Devido à pressão exercida por esta última, o homem sempre esteve em busca da verdade, perseguindo-a em três vias: na ciência, na filosofia e na religião.

Nem sempre se pode dar como certo que o que se vê é a realidade. Aquele que é observador e atento logo descobre que o que aparece como fato para uns não é real para outros. Mesmo o processo de percepção comum contém muitas armadilhas e limitações. Em Intelligence Came First (Primeiro Veio a Inteligência) ressalta-se que existem vários estágios de consciência entre a percepção de um objeto e a formulação de um conceito a respeito dele. Ninguém vê o mesmo objeto físico comum como ele realmente é, pois apenas alguns dos seus aspectos, cores e características podem ser captados pelos sentidos. No próprio órgão do sentido existe um processo de seleção e interpretação. Assim, quando o olho vê alguma coisa, ele seleciona somente aspectos peculiares, antes que uma mensagem seja transmitida à parte correspondente do cérebro, onde ocorre uma outra interpretação antes mesmo que o observador consiga obter uma impressão do objeto que ele vê. Portanto, não se pode obter de qualquer objeto senão uma aproximação intelectual. Este simples fato deixa claro que ninguém pode dar como certo que conhece a verdade, nem mesmo sobre as coisas físicas. Portanto, aqueles que através dos tempos, sinceramente buscaram a Verdade, perceberam o seu caráter ilusório.

A busca da verdade é um aspecto da natureza do homem. Outro aspecto é a fuga para a ilusão. A ilusão pode tomar várias formas. Uma delas é a ilusão da matéria. Homens e mulheres nascem e morrem, sem saber por que nascem, para onde vão ou qual o propósito do seu breve intervalo de tempo na superfície de um mundo que é um grão minúsculo no vasto oceano de universos. Para a maioria das pessoas, a vida efêmera na Terra é a única realidade, pois não conhecem mais nada. Esta ignorância surge da ilusão de que só aquilo que veem e conhecem é real, que só se pode experimentar a realidade por meio desta estrutura física nos poucos anos de vida que recebemos. Agarra-se cada momento de prazer e cria-se uma sociedade altamente consumista, orientada pelo prazer. O materialismo crasso leva à crueldade, não só para os seres humanos, mas também para os animais, pois a vida dos outros não tem importância na luta incansável pela vida. O materialista idolatra o sucesso. Para crescer, os outros têm de ser pisoteados, senão ele mesmo entra em colapso por não poder obter fama, reconhecimento ou posição de destaque.

A perspectiva hedonista não é novidade. Ela era adotada na Grécia e em muitos outros países. Mas desde que o mundo moderno conseguiu produzir uma variedade sem precedentes de prazeres para excitar os sentidos, o hedonismo passou a ser mais difundido do que nunca. A contrapartida do prazer é a frustração e o medo, medo de que no tempo de vida que nos é atribuído não nos seja possível fazer o melhor da nossa vida. E o medo e a frustração levam à violência, como se evidencia no mundo de hoje em toda parte.


Uma segunda forma de ilusão tem sua origem na crença. O materialista só acredita no que pode ser conhecido através dos sentidos. Nada existe para ele, exceto o que esteja dentro do campo da sua própria experiência. Todavia, há quem esteja disposto a imaginar a existência de muitas coisas, mesmo que não seja capaz de vê-las. A religião é muitas vezes produto dos medos e esperanças do homem, uma estrutura de ilusão baseada na crença. Quando se está descontente com o pouco que se tem, quando as relações não são satisfatórias, quando existe o medo da morte, da solidão, da incapacidade de avançar na vida, a frustração é amenizada pela esperança de um outro mundo, que irá oferecer satisfação mais duradoura. É reconfortante imaginar que um poder sobre-humano pode salvar uma pessoa do sofrimento e do castigo, das decepções que fazem parte da vida cotidiana.

Assim, o homem imagina um Deus ou deuses atendendo as suas necessidades específicas, e o veste com vários tipos de roupagem. Como disse Voltaire, Deus é criado pelo homem à sua própria imagem; as escrituras e mitologias das várias religiões dão amplo testemunho sobre isso. A luta pela vida torna o homem tirânico, e assim sua imaginação construiu a imagem de um déspota sobre-humano que é chamado para remover do seu caminho qualquer obstáculo ou inimigo. Como o homem é mesquinho, o seu Deus também o é; seus filhos prediletos vão para o paraíso e os seus inimigos são relegados à perdição, de acordo com os seus caprichos e fantasias.

Numa das primeiras literaturas da Sociedade Teosófica faz-se referência ao mal que surgiu do hábito de imaginar e das ilusões criadas pelo homem - aquilo que denominamos religião:

“A causa principal de cerca de dois terços dos males que perseguem a humanidade . . . é a religião sob qualquer forma e em qualquer nação. É a casta sacerdotal, o clero e as igrejas.É nessas ilusões que o homem vê como sagradas, onde ele deve procurar a fonte daquele sem-número de males que são a grande maldição da humanidade e quase que domina totalmente o gênero humano. A ignorância criou os Deus e a astúcia aproveitou a oportunidade. [...] Foi a impostura do clero que fez com que esses Deuses passassem a ser tão terríveis para o homem; é a religião que o transforma no beato egoísta, no fanático que odeia toda a humanidade,fora de sua própria seita, sem torná-lo em nada melhor ou mais moral por isso. É a crença em Deus e nos Deuses que faz de dois terços da humanidade escravos de um punhado daqueles que enganam com o falso pretexto de salvá-los. Não é o homem está sempre pronto para cometer qualquer tipo de maldade se lhe disserem que o seu Deus ou Deuses exige o crime? . . . Durante dois mil anos, a Índia gemeu sob o peso da casta, com os brâmanes engordando a si mesmos com o melhor da terra, e hoje os seguidores de Cristo e os de Maomé estão cortando as gargantas uns dos outros em nome de e para a maior glória dos seus respectivos mitos. Lembrem que a soma de toda a miséria humana jamais diminuirá até aquele dia em que a melhor parte da humanidade destruir, em nome da Verdade, da moralidade e da caridade universal, os altares dos seus falsos deuses. (Cartas dos Mahatmas para A. P. Sinnett, Vol.II, p. 61)

Estas são palavras fortes, mas, infelizmente, ainda verdadeiras. Existe antagonismo hoje entre hindus e muçulmanos, entre muçulmanos e judeus. Conflitos de muitos outros tipos estão surgindo em decorrência do fanatismo religioso. Milhões de pessoas pobres e ignorantes escravizam a si mesmas, submetendo-se à vontade dos sacerdotes que evocam para si o papel de intermediários da lei e encorajam o crime em nome da religião. O sistema de párias, as guerras 'santas’, a crueldade, o ostracismo social, tudo isso têm sido parte da chamada religião.

Existe um terceiro tipo de ilusão, produzida pelo intelecto. Na tentativa de compreender a natureza e a lei do universo em toda sua vastidão, complexidade e sutileza, postulam-se teorias de vários tipos. As teorias se tornam sistemas filosóficos conflitantes e escolas de pensamento que criam o fanatismo e a intolerância. Cada um acredita que o seu sistema é superior. Cada um está sob a ilusão de que conhece a verdade melhor do que os outros.


O confronto de opiniões e ideologias, sejam filosóficas, políticas ou religiosas, produz o ódio, o fanatismo, a má vontade e separa as pessoas. Mas se o homem estivesse realmente preocupado em encontrar a verdade, o mundo inteiro seria diferente. Se a religião incentivasse os homens a procurar a verdade, ao invés de dizer-lhes no que acreditar, o mundo seria um lugar mais pacífico, pois a tolerância acompanha o desejo de descobrir o que é verdadeiro.

Hoje, a ciência deixa claro que até mesmo a nossa percepção dos objetos físicos não corresponde às coisas como elas são. Todavia, a existência não consiste somente de objetos físicos. A matéria é apenas um jogo de forças que se origina no desconhecido, do qual surgem as aparências que nós pensamos ser a realidade. Os conceitos do homem podem não corresponder exatamente às coisas como elas são, porque antes de formar o conceito, ele já interpreta o que percebe de acordo com os seus próprios preconceitos e condicionamentos. Portanto, o homem sábio não chega a qualquer conclusão sobre a verdade das coisas. Como um cientista, o homem sábio tem, por ora, um postulado com o qual se dispõe a trabalhar. Quando uma hipótese é formulada pelo cientista, ela é continuamente testada de modo experimental, e à medida que novos fatos se tornam conhecidos, novos postulados são propostos. Portanto, há progresso contínuo no domínio da ciência. O que é verdadeiro, conforme considera a ciência, é também verdadeiro no âmbito não material, pois o material e o não-material participam de uma única existência. "O que está em cima é como o que está embaixo". Somente aquele que mantém a mente continuamente aberta pode encontrar a Verdade.

Quando existe uma abordagem científica, não pode haver intolerância, porque se sabe que o conceito de verdade que se tem está sujeito a ser limitado, e até mesmo errado. Há que se acordar entre os outros buscadores da verdade a tolerância que se espera deles receber. Se a humanidade estiver preocupada com a verdade e disposta a abandonar suas ilusões, haverá um mundo pacífico, onde reina a cooperação porque se aceita que existam muitos caminhos para a Verdade. Existem os caminhos do cientista, do místico, do artista, do sábio - tudo conduz a esse ponto central que é a Verdade. Além disso, quando se reconhece que o erro é possível e que o conhecimento tem suas limitações, não há a dependência de uma autoridade. A autoridade surge quando existe a crença numa classe privilegiada que se presume ter acesso à verdade que outros não possuem. Mas, por mais erudito ou sábio que seja um homem, ele jamais poderá fazer alguém enxergar a verdade. Cada pessoa consegue enxergar somente aquilo que os seus olhos são capazes de ver. Nem mesmo o maior matemático ou cientista conseguirá fazer quem não aprendeu aritmética elementar compreender as leis mais profundas do universo. Cada pessoa tem de se preparar para os novos conhecimentos, não existem atalhos. Existem condições em todos os níveis que devem ser cumpridas antes que o estudante esteja pronto para conhecer.


Todos nós sabemos, no que diz respeito aos sentidos externos, que certas condições são necessárias para uma percepção acurada. O olho deve ser saudável e livre de distorção. Mesmo o olho saudável deve ser treinado para observar. O artista vê muito mais em um objeto do que a pessoa comum, porque ele treinou o olho para observar os detalhes - tons de cor e assim por diante. Da mesma forma, no âmbito mental, é necessário boa saúde e treinamento. Uma mente que não é cultivada, que não aprendeu a ser perspicaz e alerta, não irá captar uma ideia sutil ou uma verdade profunda. A correta educação deve se preocupar em preparar a mente e as faculdades mentais para receberem o conhecimento. Deve haver treinamento para a clareza de pensamento, a lógica, a apreensão de detalhes e associações, enfim, para se enxergar as sutilezas. Até que a mente seja capaz de funcionar dessa maneira, ela não conseguirá compreender os ensinamentos mais elevados. Isto é válido, também, nos domínios do conhecimento que existem além da mente. As experiências profundas da vida, das quais muitos místicos e sábios nos têm dado provas, não podem ser apreendidas pela mente. Como declaram os Upanishads, a Realidade não pode ser alcançada nem por conceitos nem por palavras. Para se conhecer o que está além da mente, condições rigorosas devem ser cumpridas. A Verdade reside em muitos níveis - físico, mental e mais além. Ela só pode ser descoberta por alguém que está disposto a tornar-se digno dela. Ela não pode ser obtida pela força nem pela persuasão. O verdadeiro papel da religião é guiar homens e mulheres para descobrir quais são essas condições e ajudá-los a cumpri-las.

A condição primeira e principal para aquele que segue a religião da Verdade é um interesse profundo e persistente para encontrá-la. Isto implica não ter pré-julgamentos ou uma convicção de que já a conhece. A Verdade não pode ser descoberta por uma mente que tem fixações, preconceitos ou tendências de qualquer espécie.

No Bhagavad Gita, e também nos Yoga Sutras de Patanjali, diz-se que Abhyasa é necessário para se fazer progresso espiritual. Abhyasa, infelizmente, é muitas vezes traduzido como prática. A prática é a repetição de uma fórmula que uma pessoa aprendeu. Mas Abhyasa é, de fato, o exercício constante do poder de discernir. Isto significa que deve haver um interesse constante e fervoroso para se descobrir o que é a Verdade. Não pode haver nenhum trecho do caminho até o topo da montanha em que o caminhante se dê por satisfeito. O buscador deve estar continuamente empenhado em investigar, em examinar com mais mais profundidade. J. Krishnamurti fala do aprendizado como uma qualidade da mente verdadeiramente religiosa. Ele diz:

“A mente religiosa é uma mente jovem, uma mente que está aprendendo e, portanto, ela está além do tempo. Só uma mente desse tipo é uma mente religiosa, não a mente que vai aos templos. Esta não é uma mente religiosa. Não é a mente que lê livros e citações eternamente, moralizante. Esta não é uma mente religiosa. A mente que diz orações, que repete, no fundo está com medo e cega para o conhecimento. Portanto, ela não é uma mente religiosa. A mente religiosa é a mente que está aprendendo e, portanto, ela jamais está em conflito em qualquer momento, portanto, é uma mente jovem, uma mente inocente.”

Outra condição para a busca bem-sucedida da Verdade é a serenidade imperturbável. É só com a mente serena que a verdade dos mundos invisíveis pode encontrar o seu reflexo. Vários fatores fazem a mente perder a sua serenidade e manter-se num estado de agitação. O medo é um deles. A mente assustada vê de acordo com o que existe dentro de si. O homem que tem medo vê reflexos do seu próprio medo em toda parte do universo. O medo vê com desconfiança; ele toma por inimigo cada sombra. O mesmo é verdadeiro para todas as paixões que agitam a mente, seja ciúme ou inveja, amor ou ódio. As opiniões também, distorcem a capacidade da mente de ver os fatos como eles são. Ela vê apenas em termos de nacionalidade, religião, casta, posição social e outras classificações. Pela classificação dos seres humanos em muçulmanos, hindus, russos ou americanos, a mente é levada ao conflito. Por isso, Madame Blavatsky dizia repetidamente que quem quiser conhecer a Verdade precisa remover todos os preconceitos de sua mente e tudo o que aprendeu através da sua educação, dos seus pais, das escrituras e do meio ambiente. Só então é que poderá "aprender um novo alfabeto no colo da Mãe Natureza".

Então a mente precisa tornar-se pura e serena, livre de opiniões, tendências e emoções autocentradas, pois somente nesse estado pode haver uma consciência da Verdade. Aqueles que estão seriamente em busca da verdade já estão criando um mundo melhor, pois a pré-condição para a sua realização é a pureza e o discernimento nascente. Onde houver esse discernimento e essa abnegação, o ambiente começará a mudar, porque é o egoísmo que cria um mundo caótico e cruel. Então, a busca da verdade não é absolutamente irrelevante para o estabelecimento de um mundo de paz. Se a humanidade adotasse o lema Satyân Nasti Paro Dharmah - "Não Há Religião Superior à Verdade", poderia se assegurar um mundo justo e belo para todos.


Extraído do site da Sociedade Teosófica na Índia http://www.ts-adyar.org/content/international-presidents-writings-0 - tradução Roberto C. de Paula, texto selecionado para estudo em Loja realizado em julho de 2011.

"Nenhum Teósofo, do menos instruído ao mais culto, deve pretender a infalibilidade no que possa dizer ou escrever sobre questões ocultas" (Helena P. Blavatsky, DS, I, pg. 208). A esse propósito, o Conselho Mundial da Sociedade Teosófica é incisivo: "Nenhum escritor ou instrutor, a partir de H.P. Blavatsky tem qualquer autoridade para impor seus ensinamentos ou suas opiniões sobre os associados. Cada membro tem igual direito de seguir qualquer escola de pensamento, mas não tem o direito de forçar qualquer outro membro a tal escolha" (Trecho da Resolução aprovada pelo Conselho Geral da Sociedade Teosófica em 23.12.1924 e modificada em 25.12.1996.

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