quarta-feira, 8 de maio de 2013

A dança do vazio: a compaixão

Há dois tipos diferentes de sofrimento. O primeiro é a dor natural. É a dor de estar com fome, fisicamente ameaçado ou no estado natural de sofrimento psicológico que ocorre quando se perde um ente querido. Estes são os sofrimentos inevitáveis. É fácil falar de compaixão neste nível. Se a pessoa está com fome, ela precisa de alimento. Se ela está sofrendo psicologicamente, às vezes ela precisa de um espaço para a manifestação desse sofrimento. Oferecer esse espaço pode ser um ato de profunda compaixão, tanto quando esse espaço é concedido de uma pessoa para outra como quando esse espaço é concedido de si para si mesmo. Eu chamo este nível básico de sofrimento simplesmente de “dor”, a qual se pode atender de forma prática. Mestre Eckhart tinha uma ótima maneira de dizer isso: se você está num estado de meditação e êxtase e o seu vizinho está com fome, precisando de um prato de sopa, agradaria muito mais a Deus você dar a sopa ao vizinho do que permanecer no seu êxtase.

Estes movimentos de compaixão são muito simples e neles existe alegria. Quando não estamos despertos em nossa verdadeira natureza, podemos fazer estas coisas de qualquer maneira a partir da nossa ideia de compaixão. Mas se houvermos literalmente atingido a nossa verdadeira natureza, constataremos que ela encontra alegria ao atender o momento da necessidade. Quando a natureza não egoísta do Eu é despertada, descobrimos que esta natureza não procura evitar. Ponto final.

O segundo tipo de sofrimento – os outros noventa e cinco ou noventa e nove por cento – é o sofrimento psicológico, que é criado pelos estados internos de fragmentação. Este tipo de sofrimento acontece porque a pessoa não conhece a sua verdadeira natureza. A marca de alguém que conhece a sua verdadeira natureza plenamente é ser não fragmentado. Isto não significa que a pessoa uma vez iluminada nunca experimentará fome ou sentirá profundo pesar se morrer um ente querido. A pessoa pode experimentar estados mentais que são desagradáveis, mas o que ela não sentirá é a fragmentação interior que torna a tristeza inicial muito maior. Essa é outra camada de sofrimento que se adiciona à dor inevitável.

Não se pode fragmentar o verdadeiro Eu, mas se pode fragmentar o eu imaginário com muita facilidade. A maior parte do sofrimento surge deste eu fragmentado que existe somente na mente da pessoa. Como ele existe somente na mente da pessoa, e ela acredita nele, ele envia sinais ao restante do corpo e então o restante do corpo vive a experiência fragmentária, traumática, emocional. No budismo fala-se na roda do sofrimento, a chamada roda do samsara, que é o sofrimento que resulta desta fragmentação interior, deste falso sentido de eu. Quando o sofrimento surge, ele é cíclico, mecânico e impessoal. Ele acontece quer você queira ou não. Ele está intimamente associado ao mundo porque o mundo em geral funciona sobre a roda do samsara.

O samsara é a manifestação completamente mecânica do condicionamento. Uma pessoa é acionada e aciona outras cinco; cada uma dessas cinco aciona outras cinco e isso vai se estendendo como os aros de uma roda até que um grande número de pessoas seja afetado. Sair dessa roda do samsara significa acordar para o fato de que a única coisa que existe realmente nessa roda é o entendimento errôneo – a ideia de que eu sou este ser com estes sentimentos e problemas. Chamamos isso de samsara porque isso de fato não é real. Existe somente dentro da nossa cabeça. Em nossa cultura fazemos do sofrimento do samsara algo nobre. É quase um sacrilégio imaginar que quem é você não é um problema a ser resolvido. Jamais se espera que de fato pulemos fora desta roda de sofrimento e que despertemos deste transe do “eu”.

Imagine que você vai visitar a terra dos marcianos e lá você vê que cada marciano tem dentro da cabeça um sentido individualizado de eu, com um roteiro próprio de histórias desse “eu”. Mas você consegue ver claramente que nenhuma destas histórias é verdadeira. Você consegue ver que eles poderiam de fato remover toda essa história – de cabo a rabo – e ficar bem. Porque a luz de consciência é o que de fato vivencia a vida; as histórias simplesmente se apropriam desta luz e a fragmentam. Todo ser é esta luz de consciência, mas todo mundo acredita que é a sua própria história. Isso é loucura. Mas obviamente as pessoas pensam que é normal estar enredado na sua própria história, porque existe um acordo coletivo de que isto é normal. A insanidade egóica é vista como normal.

Você não é nenhuma das histórias que acreditou sobre si mesmo. O que você é, de fato, é ausência de história. Por isso o Buda disse: “Não existe um eu”. Numa linguagem mais atual, Buda pode ter despertado e dito: “Não existe história de um eu”. O sentido que você tem de um eu separado, isolado, é a origem de toda a sua luta. Você tem que lutar porque está prestando atenção a um aglomerado de imagens e crenças. Você está lutando para manter esse sentido de eu separado, inclusive quando está lutando para livrar-se desse sentido de eu separado. Quando você parar de lutar, irá perceber que não existe um eu separado. Não existe de fato um eu. Portanto, esse sentido de eu não é um nome; na verdade é um verbo, o verbo lutar. E quando você luta você sofre.

Por que os humanos lutam? Se não houvesse algo a ganhar com isso, você não lutaria. Isto é importante entender, porque os seres humanos espiritualizados tendem a pensar: “Por que eu não consigo simplesmente deixar passar?”. Você mantém a situação porque dela obtém algum benefício e você o percebe – você precisa ter esta experiência de ser eu. Isto não é totalmente ruim, você pode sentir certa satisfação com isso. Para o sentido de um eu ligado ao tempo pode haver algumas experiências temporárias muito importantes. Há muitas experiências que o sentido de um eu separado enxerga como muito positivas. Por exemplo: você vai à casa de um vizinho, vence-o no jogo de buraco e ao sair de lá se sente muito melhor. Ou você consegue ganhar investindo na bolsa de valores e por um ano sente-se muito rico, no topo do mundo, mas no ano seguinte tudo isso desaparece. Ou você tem um terapeuta ou instrutor espiritual e então começa a achar que está progredindo, tem a sensação de estar melhorando. Tudo isso é felicidade falsa, felicidade irreal. Felicidade falsa é transe, é engano egóico.

A liberdade, e certamente a iluminação, tem tudo a ver com morrer para aquilo que é. É muito simples. A iluminação nada mais é que a completa ausência de resistência àquilo que é. Fim da história. Que liberdade mais poderia haver senão o fim de toda e qualquer luta e resistência? Porém, para desistir de lutar contra aquilo que é não pode haver qualquer apego à autoimagem, aos pontos de vista, às ideias, às identidades. Isto é muito importante porque as pessoas espiritualizadas sempre querem abandonar o seu sentido de identidade, mas continuam mantendo os seus pontos de vista, a sua maneira de ver o mundo. No entanto, essas pessoas não conseguem trazer isso para a iluminação porque a iluminação não tem um ponto de vista. Não tem uma ordem do dia. Não tem qualquer grande exigência em relação ao mundo, ao eu, ao outro. Não tem um centro. A iluminação simplesmente ama.

O eu imaginário tem um centro. Ele sente que tudo está acontecendo em função do eu. “Eu sou o enredo central no drama do universo”. O eu imaginário faz o papel principal a cada segundo da sua existência, inclusive quando sonha. Isso é ao que me refiro como centro. Tudo se relaciona a ele. Ele pensa que tudo que acontece é pessoal.

Mas a verdade é que não existe centro, tudo está simplesmente acontecendo. Há uma grande quantidade de pontos movendo-se em consciência, mas centros não existem. Pode até haver um ponto focal em cada corpo individual, mas isso é diferente de pensar que o ponto focal é o centro de tudo. Lembra quando a ciência pensava que a Terra era o centro do universo e que tudo girava ao seu redor? Da mesma forma, pensamos que tudo na vida gira em torno de nós.

Lembra quando a sua ideia de compaixão era entrar na história ilusória de alguém e participar do que estava acontecendo? Você reconhecia: “Eu tenho que apoiar a sua história ilusória para que você também apoie a minha, então iremos realmente nos sentir unidos e mais próximos um do outro.” Mas o nível de compaixão do qual estou falando significa outra coisa. Esta compaixão significa uma devoção à Verdade. E o primeiro movimento desta compaixão tem que estar direcionado para o próprio. O mundo está cheio de gente que quer ser compassiva com os demais e salvar o mundo, mas que não quer apropriar-se disso internamente porque isso desloca o centro. Esse é o ato compassivo decisivo: deslocar o centro. Então existe somente a liberdade: a liberdade de despertar, a liberdade de ser o que se é – espírito – em vez de ser a encarnação viva de uma história. Assim, esta devoção à Verdade torna-se um movimento de compaixão não somente por nós mesmos, mas pelos outros, e começamos a ver que o que fazemos por nós mesmos, fazemos automaticamente pelos outros.

Quando você desperta da sua história, adivinhe o que você percebe das outras pessoas? Que elas não são as suas respectivas histórias. Elas também são espírito. E esse espírito é totalmente independente das histórias delas e das suas histórias sobre elas. Assim você perde não apenas o seu centro, você perde também o centro delas, aquela caixa onde você as colocava. Você vê que elas são o mesmo que você. Por isso se diz que a iluminação nunca é um assunto pessoal. Você não consegue perceber que é iluminado e ainda acreditar que os outros não são. Você não consegue enxergar a sua verdadeira natureza sem enxergar a verdadeira natureza de todas as coisas. É literalmente impossível. Este é um ato grandioso de compaixão, um ato de amor.

Nada gera mais renúncia do que um ato de amor. A compaixão traz naturalmente a renúncia. Mas se estamos renunciando apenas para ganhar algo, isso não é renúncia. Essa é a paixão da pessoa espiritualizada – renunciar todas as coisas mas esperar como retorno a plena e bem-aventurada iluminação. É como dizer: “Eu posso dar algum dinheiro a você, mas você tem que devolver um milhão.” A verdadeira renúncia é como dizer: “Por favor, me liberte deste dinheiro. Eu não quero nem preciso dele. Eu quero experimentar a alegria de não tê-lo.”

Renunciar é desistir da nossa história sobre nós mesmos, inclusive da nossa história de quão iluminados nós somos. Vemos que a nossa história não contém verdade alguma. Não podemos consertá-la de alguma maneira para que ela se torne verdadeira. Não conseguimos transformar uma ficção numa verdade. Podemos melhorá-la ou piorá-la, mas ainda será uma ficção. Começar a ver que a nossa história é inteiramente ficção – isto é despertar. “Meu Deus, era uma ficção!”. Isto é liberdade. Para o ego ou eu imaginado, enxergar isso é terrível, porque ele ainda está interessado na ficção. Mas para a consciência, perceber que toda a coisa é uma ficção, é uma grande liberdade. Então começamos a ver o que é verdadeiro.

Quando a consciência se desloca de qualquer ficção sobre o eu, a vida e os outros, o que resta é a verdade. Nada se pode afirmar a respeito do que isso seja porque então se torna uma ideia. Mas ver, perceber e experimentar a vida sem qualquer história, de modo que a essência aconteça a partir do centro, é efetivamente o maior ato de compaixão que alguém pode realizar por si mesmo ou por outros porque então ele existe “destituído de um eu”. Destituído de um eu é efetivamente algo literal, é existir sem um centro, sem uma história; não é a imagem que a mente retém de ser altruísta, que é uma ideia romântica de autossacrifício. Destituído de um eu é existir sem um eu.

Existir sem um centro não é absolutamente o que a mente pensa que é. Perceber que já não se possui um centro é perceber um amor muito profundo e duradouro, um amor que é inerente – que não é produzido. É um amor sem motivo. Não há razão para estar em paz, mas a pessoa está. Mesmo que ela não tenha razão para se sentir bem ou estar feliz, mesmo assim ela está em paz. O amor sempre procura o alívio do sofrimento, não através do alívio da história, mas através do alívio do contador da história, que é a ilusão do eu.

Observe que toda vez que você entra no aqui e agora, o aqui e agora é extraordinariamente simples. Você faz perecer todos os seus compromissos para estar em outro lugar, ser alguma coisa ou chegar a um lugar. O aqui e agora é totalmente adequado. Você sabe que você não é um problema a ser resolvido, nem o seu vizinho nem o mundo o são. Isto é revolucionário para este estado atual da consciência humana. Você consegue imaginar que no aqui e agora você não é um problema a ser resolvido de maneira alguma? Imagine que você sabe que qualquer coisa que lhe diga o contrário é apenas um movimento do pensamento na mente que diz: “O que quer que seja, não é como deveria ser”. Assim, o maior ato de compaixão começa do lado de dentro. Quando o eu não é mais visto como um problema, isto se chama “paz que ultrapassa todo o entendimento”.

Se você ainda não consegue ver literalmente que todo mundo é o Buda, você não está vendo as coisas da maneira como elas são. Uma vez Madre Teresa disse que quando ela estava tratando dos doentes e carentes, era de Jesus que ela estava tratando em cada um deles. Isto não é um belo clichê espiritual. É realidade concreta, efetiva. O verdadeiro Cristo existe em todos os seres. É o mesmo que dizer que Buda existe em todas as pessoas. E a única coisa que pode perceber isto é o Cristo interior. Só o Buda interior percebe o Buda. Só a Unidade interior é capaz de perceber a Unidade. O eu jamais perceberá a Unidade.

Todo mundo transmite a sua própria percepção como um sinal de transmissão via rádio vinte e quatro horas por dia. E todo mundo recebe. Quando você percebe que a sua verdadeira natureza já é livre; que ela existe inerentemente, destituída de imagem; e que ela é puro espírito e presença; você vê que ela é o que todo mundo é. Mesmo sem pensar nisso, você transmite isso. Se você pensa que todo mundo é separado, você emite esse sinal, não importa o que você faça.

Com esta liberdade você começa a perceber que não existe nenhum interno ou externo porque tudo é uno, e a visão disso é mais poderosa do que qualquer coisa que eu venha a dizer. Eu lhe garanto que um ser que vê o Buda em você vale mais do que ler dez mil livros sobre o Buda. Um ser que efetivamente sabe que existe apenas o Buda, que nada mais está acontecendo, produz um efeito mais poderoso do que qualquer outra coisa.

O sentimento mais profundo de compaixão que não procura alterar alguma coisa, paradoxalmente altera todas as coisas. Quando você atinge no seu íntimo aquilo que não está tentando alterar alguma coisa, você atinge a não resistência absoluta e isto altera a sua percepção de tudo. Quando o condicionamento atinge o íntimo que não é condicionado, ele altera o condicionamento de maneira irreversível. Isto é sagrada alquimia, isto é compaixão.

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Estudante: O apego à identidade é traumático para todas as pessoas?

Adyashanti: Ligue a televisão ou escute o seu vizinho. É sempre traumático, é um desastre quando se retira o condicionamento para você ser o que você é. Não que o senso de identidade seja inerentemente traumático. É a contração secundária que faz com que isso seja experimentado como traumático. Abra o jornal. Essa é a história do indivíduo-eu, o que o indivíduo-eu faz todos os dias. É pura insanidade. É muito importante estar mais tomado pela verdade do que querer livrar-se da identidade. Não se pode manter a atenção na identidade e livrar-se dela ao mesmo tempo. Aprenda a distinguir o que é real e o que não é real. Muitas pessoas, quando surge esse senso de eu, querem logo se livrar dele ou agradá-lo, que nem enxergam o que é verdadeiro.

Estudante: Como você vê isso?

Adyashanti: A verdade é o que é mais me interessa. É a única coisa que interessa. Ela é sempre estimulante. Tudo o mais é uma chatice que ninguém merece. Para mim a única coisa que está acontecendo é a verdade. Só existe uma coisa acontecendo e ela é sempre Buda, sempre o Uno. O interesse permite a pessoa distinguir o que é verdadeiro e o que não é verdadeiro. Isso é diferente de tentar buscar um resultado. Quando a pessoa não está tentando alcançar um resultado, fica mais interessante ver o que é verdadeiro e o que é falso.

O cérebro e a mente oferecem uma caixa de ferramentas ótimas para fazer coisas práticas. Mas qualquer pensamento fora da caixa de ferramentas mentais é uma história que não possui verdade alguma em si mesma. Nela não existe realidade objetiva alguma. Tudo que está acontecendo dentro da cabeça não é a verdade; é apenas uma história. O que você é sem a sua história?

No terreno da fragmentação, existe sempre algo a saber. Mas na iluminação não existe nada a saber. A iluminação é efetivamente um processo de não saber. Quando a pessoa está no estado de não saber em relação a todas as coisas da mente, a única coisa que fica é a Verdade. Não se pode nem mesmo falar desse tipo de saber, porque senão a mente o capta imediatamente e faz dele o seu próprio saber mental, que nada mais é do que uma representação simbólica. A Verdade jamais pode ser encontrada numa representação simbólica porque essa representação não é uma coisa real. Se compreendermos isto, veremos que desperdiçamos muito tempo procurando a Verdade na mente.

ADYASHANTI. Emptiness dancing, pp. 119-126, Sounds True, Inc., Canadá: 2006, tradução Roberto Carlos de Paula.  Texto selecionado para estudo em Loja realizado em 07.05.13.


"Nenhum Teósofo, do menos instruído ao mais culto, deve pretender a infalibilidade no que possa dizer ou escrever sobre questões ocultas" (Helena P. Blavatsky, DS, I, pg. 208). A esse propósito, o Conselho Mundial da Sociedade Teosófica é incisivo: "Nenhum escritor ou instrutor, a partir de H.P. Blavatsky tem qualquer autoridade para impor seus ensinamentos ou suas opiniões sobre os associados. Cada membro tem igual direito de seguir qualquer escola de pensamento, mas não tem o direito de forçar qualquer outro membro a tal escolha" (Trecho da Resolução aprovada pelo Conselho Geral da Sociedade Teosófica em 23.12.1924 e modificada em 25.12.1996.

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