quarta-feira, 12 de junho de 2013

A dança do vazio: o núcleo radiante

Extraído do livro “A Dança do Vazio”, de Adyashanti

O inverno é uma época interessante do ano. A maioria dos dias que consideramos sagrados cai no inverno. É a estação das celebrações espirituais como o Ramadan, o Hanukkah e o Natal. Muitas vezes comemora-se a iluminação do Buda nesta época do ano. O inverno é um portal sagrado, uma oportunidade. As folhas das árvores caem totalmente, os frutos despencam no chão, os galhos se desnudam, e tudo volta à sua natureza e raiz fundamental. Não só no mundo exterior, mas também no interior, há um despojamento natural.

O inverno é também a época das grandes chuvas e a época da neve. Todo ano a Cordilheira Sierra fica menor do que era no ano anterior. Parte da cordilheira é lançada dentro dos rios à medida que a água desce e retorna à sua origem, fluindo para os lagos e oceanos.

Mesmo com as suas tempestades, o inverno é a época mais tranquila do ano. Não há nada como o silêncio depois da tempestade. Se alguém já teve o privilégio de estar nas montanhas logo após uma tempestade de neve, não existe vento, nada se move, a neve suga cada som e a pessoa ouve um silêncio profundo por toda parte, ela sabe que este silêncio tem potencialidade.

Em certo sentido, o autoquestionamento é uma forma de inverno espiritualmente induzido. Não se trata somente de buscar a resposta certa, mas de despojar-se, de permitir-se ver o que não é necessário, o que se pode ficar sem, o que se é sem as folhas. No caso dos seres humanos, não são as folhas. São as ideias, os conceitos, os apegos, os condicionamentos. Tudo isto constitui a sua identidade. Não seria terrível se as árvores se identificassem como sendo as próprias folhas? São coisas muito frágeis para alguém se apegar.

O questionamento é uma forma de induzir o inverno espiritual no seu sentido mais positivo, desnudando tudo até a raiz, até o âmago. Quando nos permitimos ser desnudados e adentramos realmente o nosso inverno interior, com todas as folhas ou pensamentos caindo da nossa mente, então podemos nos ver retornando, como se diz no Zen, à pessoa que éramos antes dos nossos pais terem nascido. Isso é mergulhar na raiz mais essencial do ser.

Penso que não existe nada que nós, seres humanos, evitamos mais do que o inverno espiritual. Se os seres humanos não resistissem ao despojamento das suas próprias identidades, se permitissem a si mesmos experimentar esse inverno, todos nós estaríamos iluminados. Se ao menos deixássemos esse inverno acontecer, existiria em nós um despojamento natural, uma dissipação. Quando você está muito quieto e silencioso, essa dissipação acontece naturalmente. Se você não está tentando controlar alguma coisa, você sente que certos padrões de pensamento e qualidades energéticas estão se dispersando como as folhas ou a neve que cai. É um movimento delicado. É para isso que serve o questionamento espiritual. Perguntar "Quem eu sou?" é estar presente no espaço do não saber , no espaço do questionar todas as suas crenças e suposições. A percepção da verdade eterna chega à custa de todas as suas ilusões.

É claro que um ser humano tem habilidades que uma árvore não tem. Imagine que uma árvore fosse um ser humano e que você visse essa árvore abaixando os galhos e ajuntando todas as folhas ao redor para garantir a sua segurança. Você não se sentiria mal, se você visse a árvore fazendo isso, juntando todas as folhas ao redor como se estivesse tendo uma crise existencial? Essa é a nossa tendência: recolhemos os pedaços das nossas crenças e teorias de estimação e nos agarrarmos a elas por toda a vida.

Às vezes, essa dissipação é como uma tempestade violenta que arranca as folhas da árvore. Você pode ter uma identidade sagrada e de repente um vento passa e leva embora essa sua identidade - geralmente esse vento é outro ser humano. Você pode estar pensando: "Eu sou muito iluminado, eu não aguento isso, é ofensivo demais." Então o vento passa e leva embora esse pensamento. Um amigo ou colega de trabalho vem e diz: "Isso não me parece vir de alguém tão iluminado assim", e você vê que isso era apenas outra identidade desnecessária. Se você não se abaixa para pegar isso de volta, eis a sagrada oportunidade. E à medida que isso se dissipa, você vê que não precisa dessa identidade. Ela é uma ilusão, só mais um peso morto do qual você precisa se livrar.

Voltar ao âmago, à raiz do seu próprio eu, e poder enxergar tudo que você pensa que é, torna possível eliminar as suas mais sagradas identidades. Há tanta beleza quando se descobre algo do qual se pode abdicar! O presente mais bonito desse inverno, em última análise, é algo indescritível que pode apenas ser vivido. Esse inverno, na verdade, implora que você apenas realize o desapego e depois, o desapego do desapego. Deixe acontecer esse retorno natural e espontâneo à raiz da sua própria existência. Retorne àquilo que não é definível.

Há um poema maravilhoso sobre uma árvore solitária, sem galhos, fincada na beira de um penhasco no inverno. Ele foi escrito por alguém que estava tentando descrever o próprio despertar. Uma fenda se abre, atravessa a casca da árvore e a casca se rompe. Imagine você abrir uma fenda numa árvore ou num tronco de madeira para ver o que existe no núcleo. Para ver o que tem dentro, você tem que ir quebrando até o núcleo. E o que é que você encontra? Você encontra o vazio radiante, o vazio radiante e pleno do inverno. Imagine algo radiante vindo de lugar nenhum, algo que apenas se irradia em todas as direções, saindo de lugar nenhum, absolutamente nenhum.

Quando você alcança o núcleo, e isso acontece depois que você deixa tudo cair e se dissipar, você naturalmente rompeu a casca. Há um coração espiritual nesse núcleo. Você descobre não só o vazio da mente radiante, mas também o brilho e o calor desse coração espiritual. Quando você está em repouso, você pode, de fato, sentir a mente radiante, vazia, não como um pensamento, mas como o vazio radiante de você mesmo, a não-coisidade de si mesmo e de todos os seres. Você também experimenta a plenitude do coração radiante e percebe que o vazio não é um vazio comum – é o vazio do coração pleno. Quando o vazio desperta, você sabe que ele também é o coração compassivo. O calor do seu próprio coração espiritual ganha vida.

Às vezes, o inverno parece frio, longo e solitário. Você pode estar quieto, repousando tranquilo, mas continua querendo saber: "Onde está a essência? Onde está a vida?" Você pode estar muito calmo e quieto, até desocupado de certa maneira, e ainda assim a sua casca está totalmente intacta, não sofreu qualquer ação para romper-se. É então que você experimenta o que poderíamos chamar como sendo o vazio do vazio. É uma forma de vazio totalmente protegido.

O verdadeiro vazio é quando você percebe que há muito mais do que esse vazio protegido. Quando a casca se rompe e você chega ao núcleo, você vê que as ideias que tinha sobre si mesmo e sobre os outros não são verdadeiras. Elas são meras invenções. Você as vê como coisas que lhe foram ensinadas e que você assumiu como sendo verdadeiras. Você vestiu a camisa e disse: "Isso é quem eu sou." Quando a mente está radiantemente vazia, é um vazio muito vivo. A luz do sol brilha em pleno inverno, quando se sente que o coração tem mais profundidade do que emoção – não que ele seja destituído de emoção ou que seja um coração morto. Você alguma vez saiu de casa para caminhar numa daquelas manhãs geladas, quando faz muito frio apesar de estar sol, e você pensa: "Como pode estar tão frio num dia tão ensolarado como esse?" Quando você retorna do sol que existe em você, há sempre calor. O verdadeiro vazio é radiantemente vivo.

Às vezes as pessoas me perguntam: "Se eu percebo que eu, como identidade separada, realmente não existo como eu imaginava existir, então quem vive esta vida?" No momento em que você atinge esse coração radiante do vazio, você sabe o que está vivendo essa vida, o que sempre a viveu e o que a viverá a partir desse momento. Você percebe que você não está vivendo essa vida. Na verdade, é o coração radiante que está vivendo essa vida, junto com esta mente radiante e vazia. Quando você desiste de ser quem você pensou que era, e você se permite ser quem você realmente é, então esse coração radiante vive a sua vida. Então, a não-coisidade se torna a sua realidade. Você é Consciência não dual, é isso que você é.

Uma ótima maneira de pensar e explicar a verdadeira natureza de cada pessoa (para a qual aponta todo o conceito de iluminação) é dizer que quando a verdadeira natureza é trazida à luz no âmbito da plena consciência, a mente se abre o máximo que pode. Isso não significa que os seus pensamentos irão se expandir pelo cosmo afora. Significa que a sua mente está tão aberta que não existem limites que possam contê-la. Você nota que no momento que você se agarra a um pensamento e nele acredita, a mente se fecha nesse pensamento. Portanto, a mente natural é uma mente aberta, o coração natural é um coração aberto, venha o que vier. Esse é o choque da nossa condição natural - a mente e o coração são naturalmente abertos; não sabem fechar-se em tempo algum, sob qualquer condição. E ao mesmo tempo você existe numa dimensão além da mente aberta, além do coração aberto. Tudo está contido dentro do que você é.

A mente condicionada está sempre assumindo o trabalho de Deus, perguntando o que as pessoas estão fazendo e por que elas fazem isso. Mas isso não é da sua conta, não é uma preocupação que você deva ter. Você pode simplesmente começar a andar pela vida com esta abertura natural para o que é, e ser assim em todas as condições e momentos. Isso é o que o verdadeiro eu vem fazendo o tempo todo. Quando a sua verdadeira natureza é percebida não significa que você vai ter uma experiência incrível e depois dizer: "Ok mundo, estou pronto." A experiência mais profunda é quando você percebe que esta mente aberta, radiante e vazia, e que este coração aberto e radiante foram sempre assim. Eles não precisam se abrir. Não vão abrir porque esta abertura sempre existiu. Você não verá mais dois, você verá o Uno em cada coisa e em todas as coisas.

As pessoas se sentem muito vulneráveis ​​e criam defesas. Mas criar defesas é como andar sob o céu estrelado e tentar agasalhar o vasto espaço infinito com um casaquinho. A imensidão acaba escapando pelas mangas e pelo capuz. Você veste o espaço com esse casaquinho idiota, protegendo-se dentro dele, achando que talvez um dia você possa abrir os botões do casaco e ser espiritualmente livre. Provavelmente não. É mais provável que um dia você pare de se identificar com o casaquinho idiota. Liberte-se de todas as identidades que o limitam e abrace o infinito.

O que permite essa abertura acontecer em uma grande profundidade é perceber que já somos a abertura que estamos buscando. Se continuamos a nos identificar com o aspecto humano de nós mesmos, pensamos: "Meu Deus, eu estou me abrindo para algo grande demais para mim." Quando realmente nos desapegamos e mergulhamos neste silêncio aberto, não conseguimos saber onde ele termina. Ele existe aqui, eternamente, desde sempre. Nele a nossa humanidade encontra um ambiente acolhedor para se abrir. Isto porque não estamos nos abrindo para um mistério estranho, alheio ou diferente, mas para aquilo que sempre fomos.

Se você consegue tocar a qualidade sagrada do inverno que existe dentro de si mesmo - aquela qualidade de tudo retornar à sua forma mais essencial - você se vê saindo dos domínios da mente e entrando nos domínios da abertura. Você pode começar a ter essa experiência se não estabelecer resistência a esse inverno, se deixar-se levar à medida que ele vai provocando a abertura. Isso pode ser extremamente revelador. Voltar ao essencial pode ser profundamente libertador – voltar, voltar e voltar. É preciso coragem para fazer isso. Em vez de ficar perguntando "Quem eu serei? Será que tudo vai ficar bem?" Apenas retorne ao essencial. Quando você tem a coragem e se permite retornar ao essencial, na verdade, você estará voltando à raiz do seu próprio eu. Essa é a plenitude que o inverno tem para oferecer.

É como se você retrocedesse até a semente, e só lá você pudesse ver que a semente continha toda a verdade. Quando você chega ao âmago do seu próprio ser, você percebe que a semente, que parecia muito vazia, é plena de potencialidade de tudo o que existe. É como a semente de uma árvore. Tudo o que a árvore pode se tornar um dia já está contido na semente. Apenas com o retorno completo ao essencial, é possível haver primavera em plenitude.

Não falo de ideais, metas ou potencialidades. Esta abertura é, na verdade, a essência daquilo que todas as pessoas são. Basta não ficar esperando a hora de desapegar das coisas para você perceber a sua verdadeira natureza. E quando você a perceber, viva isso. Quando o viver dessa natureza acontece, a vida acontece espontaneamente. Então, finalmente, pela primeira vez na vida, podemos dizer com honestidade e integridade, que esse é o mistério mais incrível. É insondável. Não se pode conhecê-lo. Só se pode sê-lo, consciente ou inconscientemente. Porém, sê-lo conscientemente é muito mais fácil do que sê-lo inconscientemente. Perceba a si mesmo e seja livre.


Texto selecionado e traduzido pelo irmão Roberto C. Paula para estudo em Loja realizado em 11 de junho de 2012.

"Nenhum Teósofo, do menos instruído ao mais culto, deve pretender a infalibilidade no que possa dizer ou escrever sobre questões ocultas" (Helena P. Blavatsky, DS, I, pg. 208). A esse propósito, o Conselho Mundial da Sociedade Teosófica é incisivo: "Nenhum escritor ou instrutor, a partir de H.P. Blavatsky tem qualquer autoridade para impor seus ensinamentos ou suas opiniões sobre os associados. Cada membro tem igual direito de seguir qualquer escola de pensamento, mas não tem o direito de forçar qualquer outro membro a tal escolha" (Trecho da Resolução aprovada pelo Conselho Geral da Sociedade Teosófica em 23.12.1924 e modificada em 25.12.1996. 

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