quinta-feira, 6 de novembro de 2014

O silêncio

Extraído do livro A dança do vazio, de Adyashanti

O verdadeiro silêncio tem tudo a ver com o nosso estado de consciência. Penso que todos nós estamos acostumados com aquilo que eu chamo de silêncio fabricado, que é um tipo de silêncio morto. Se você já participou de grupos de meditação, provavelmente você já experimentou o silêncio fabricado. É o tipo de silêncio que vem da manipulação da mente. É um silêncio falso, porque é fabricado, controlado. O verdadeiro silêncio não tem nada a ver com qualquer tipo de controle ou manipulação do seu eu ou da sua experiência. Então esqueça isso de controlar a mente. Estou aqui para falar de iluminação espiritual e de liberdade.

Nós somos cercados de consciência grosseira. Essa é uma consciência do tipo pesada, carregada, densa. Quando você liga a TV, você se defronta com essa consciência grosseira na maioria das vezes. Grosseira aqui significa adormecida no estado de sonho.

Nesse estado de consciência grosseira, o silêncio é visto como se fosse um objeto. A quietude é algo que aparentemente calha de acontecer à pessoa. Mas isso não é o verdadeiro silêncio. O verdadeiro silêncio é a verdadeira natureza da pessoa. Dizer “Eu estou silencioso” é algo, na verdade, bastante ridículo. Se você olhar bem, a questão não é estar silencioso; a questão é ser o silêncio.


Conceitualmente pode parecer que existe uma pequena diferença entre a experiência de dizer “Eu estou silencioso” e a experiência de dizer “Eu sou o silêncio”. Mas, na verdade, essa é a diferença entre o apego e a liberdade, entre o céu e o inferno. Pare de pensar no silêncio como ausência de barulho – barulho mental, barulho emocional, barulho externo ao redor. Enquanto você enxergar o silêncio como algo objetivo, algo que não está em você, mas que talvez pode chegar até você como uma experiência emocional, você estará perseguindo a projeção da sua própria ideia. Procurar o silêncio é como guiar uma lancha num lago em alta velocidade em busca de um lugar calmo e sereno onde tudo é silencioso, e lá vai você - vrum-vrum-vrum! – guiando a lancha no lago em alta velocidade, com uma ansiedade crescente de que você nunca vai chegar lá. Não importa quanto tempo você ficar no lago dirigindo a lancha, você jamais irá encontrar esse silêncio. Na verdade, o que você tem que fazer é desacelerar e desligar o motor, aí então você estará lá. Lá é muito calmo, muito quieto. Quando você começa a ser receptivo e sensível, você começa a voltar ao seu estado natural, que é a quietude. Ser receptivo é desacelerar. É um estado natural de quietude.

Há muitos anos eu tive a sorte de fazer essa descoberta maravilhosa, não porque eu era inteligente, mas por um fracasso absoluto. Os praticantes do Zen fazem muita meditação, seguindo a respiração. Eles parecem muito concentrados, mas o que acontece muitas vezes é que você pensa que está seguindo a respiração, e então você percebe que está seguindo a sua mente em alguma história. É como tentar disciplinar um cão que se recusa a ser treinado. Algumas pessoas parecem ser boas nesse tipo de prática. Elas mantêm o foco, nele permanecem e se aquietam. Eu, ao contrário, nunca tive a capacidade de manter a minha mente desse jeito, portanto eu não era muito bom nisso. Depois de completo fracasso repetidas vezes, ouvi meu professor dizer: "Você precisa encontrar a sua própria maneira". Em vez de me deixar envolver por um foco estreito, descobri que a minha própria maneira era estar presente, que significa estar totalmente aberto. Isso é mais parecido com escutar do que manter o foco.

Nessa escuta, eu descobri um estado muito natural, um estado que é, na verdade, o único estado que não é inventado. A partir desse estado que é parecido com a escuta, eu comecei a ver que todo esforço para inventar criava outro estado. Toda vez que eu fazia um esforço, um estado se fabricava do nada. Eu podia fabricar estados lindos, estados terríveis, estados concentrados, todos os tipos de estados; mas havia apenas um estado que era totalmente natural e absolutamente sem esforço. Nesse estado, eu encontrei o acesso ao Eu mais profundo, que é a liberdade.

Por sua própria natureza, esse estado tem que ser algo que existe sem esforço. Tem que ser algo que não requer manutenção. Uma mente tranquila, alcançada através da concentração, acaba sendo uma mente embotada, não uma mente livre. Ela pode se sentir tranquila e pode se sentir bem porque está tranquila, mas não é uma mente livre, e em seu ser você também não se sente livre. Esse é o tipo de paz de espírito que você consegue quando já aprendeu a meditar através da concentração, e quando você diz ao professor, "Sim, eu encontrei a paz, mas quando eu paro de meditar, ela vai embora num segundo." Isto diz ao professor exatamente qual tipo de meditação você está fazendo, você está controlando a sua experiência. Quando você se levanta, vai cuidar da rotina e tem que prestar atenção a outras coisas, você não consegue prestar atenção à sua concentração, portanto a sua paz de espírito desaparece, porque ela é algo que é fabricado.

Metade da prática de investigação espiritual é conduzir a pessoa ao silêncio instantaneamente. Quando você pergunta "Quem sou eu?", se você for honesto, notará que isso o conduz de volta ao silêncio instantaneamente. O cérebro não tem a resposta, então, de repente, há o silêncio. A pergunta serve para conduzir você a esse estado de silêncio que não é fabricado, onde o pensamento falha, onde a busca da correta experiência emocional falha. Se você procurar "Quem sou eu?" ou perguntar "O que é a verdade?", você notará que essas perguntas lhe trazem de volta à quietude. Se você tem resistência à quietude - e a maioria das pessoas tem profunda resistência à quietude – no momento que você retorna a esse estado de quietude, é como se você pingasse gotas de água numa frigideira quente: a mente salta por todo o lugar procurando algo mais, procurando alguma resposta conceitual, alguma imagem.

Na verdade, o tipo de quietude que é natural, espontânea e não controlada é a quietude profunda; ela é rica e vasta. A quietude controlada é estagnada, restrita. Quando a quietude não é controlada, você se sente muito aberto, você se torna receptivo, e a mente não está se impondo. Há um retorno natural à sua verdadeira natureza. A sua verdadeira natureza não está quieta; ela é a quietude. Ela poderia se chamar não corporeidade ou não coisidade. Quando você chega à verdadeira quietude, você transcendeu a quietude.


Enquanto você pensar que o silêncio existe em oposição ao ruído, esse não é o verdadeiro silêncio. Quando você está no verdadeiro silêncio, você percebe que quando você ouve uma britadeira, isso é quietude – ela apenas tomou uma forma. O verdadeiro silêncio é absolutamente inclusivo. Ele vai além de todas as ideias dualistas do que seja o silêncio. Quando entramos na quietude, descobrimos que essa quietude não está separada do movimento ou deslocamento. Depois de meditar, se você se levanta e começa a cuidar da sua rotina pensando "Por que eu não consigo manter essa extraordinária quietude?", é porque você  experimentou a quietude controlada - não a quietude natural, não controlada.  À medida que você relaxa e retorna à verdadeira quietude, quando o seu corpo se levanta para se movimentar, a própria quietude se movimenta.

Quando você se permite retornar à sua verdadeira natureza, você não está querendo que nada em particular aconteça nessa quietude. Muitas vezes, quando as pessoas estão quietas, elas estão esperando que algo aconteça e que esse algo as mantenha na periferia, flutuando, em vez de simplesmente abrirem mão disso. Quando você não está esperando que algo aconteça, existe um submergir, um aprofundamento natural, na origem do seu próprio ser.  Isso é muito silencioso. Então, e somente então, você começa a sentir a presença. Há uma presença muito palpável nessa quietude. É por isso que eu disse que não é um silêncio morto. Você pode sentir uma vitalidade. É uma presença que está dentro do seu corpo e fora do seu corpo. Ela permeia todos os lugares. Quando você está procurando por ela, você está procurando uma presença bruta, uma presença pesada que bate na sua cabeça. Isso não vai acontecer. O verdadeiro silêncio é um brilho. Você se sente brilhante. Há um despertar, um profundo sentimento de estar vivo.

Quando você se aquieta, você se permite relaxar e penetrar no momento, na sua verdadeira natureza. Quando isso acontece, você percebe que não consegue evitar nenhuma parte da sua experiência.  Quando você procura a quietude para ajudar a evitar algum sentimento, você não experimenta a verdadeira quietude. A nudez da quietude ou presença desarma você para que você não consiga evitar nenhuma experiência, nenhum acontecimento, nada.  Pode até ser que você evite as coisas, experimentando uma espécie de quietude estagnada, mas no âmbito da quietude da sua verdadeira natureza, você não consegue evitar nenhuma parte da experiência.  Está tudo aqui, esperando.

Há muitas histórias e mitos espirituais que são criados e continuam a se perpetuar que retratam esse retorno à nossa verdadeira natureza como um campo de batalha, como se houvesse algo em nós que não quer voltar a si mesmo.  Não importa se chamamos isso de ego, de eu ou de uma mente que não quer realmente se aquietar. Pode ser que as pessoas espiritualizadas acreditem nesse mito de que existe algo nelas que não quer despertar e que tem de haver alguma luta. Quando você está realmente quieto, você consegue ver que isso é totalmente sem sentido. Você consegue ver que o pensamento surgiu na mente a partir do vazio, e somente se você aceitar o pensamento como verdadeiro, ele pode começar uma batalha.  Mas você vê claramente que ele, de fato,  não é verdadeiro: é apenas um surgimento espontâneo do pensamento.  Ele não será verdadeiro a menos que você acredite e o traga para dentro da sua história da luta do heroico buscador espiritual.  No momento em que você se envolve na luta do buscador, você já perdeu a guerra.

Você vê a partir do silêncio que cada direção em que a mente se movimenta é apenas um movimento do pensamento, o qual não possui realidade em si  e que se torna real somente se você acreditar nele.  Os pensamentos simplesmente se deslocam através da consciência. Eles não têm poder. Nenhum pensamento possui realidade até você alcançá-lo, agarrá-lo e, de alguma forma, impregná-lo com o poder da crença.

A única maneira de adentrar o silêncio é a do próprio silêncio. Você não consegue adentrar o silêncio, possuindo alguma coisa; você só consegue, não possuindo coisa alguma. Você não pode ser alguém; você só pode ser ninguém. Então, a entrada é fácil. Mas esse nada, na verdade, é o preço mais alto que a gente sempre paga.  Esse nada é o nosso bem mais sagrado.  Ao silêncio nós daremos as nossas ideias, as nossas crenças, o nosso coração, o nosso corpo, a nossa mente e a nossa alma. A última coisa que nós daremos será o nada. Nós mantemos a nossa não existência, porque o nada é o nosso bem mais sagrado, e em algum lugar no nosso íntimo sabemos disso.  Só o nada adentra o silêncio; essa é a única coisa que o penetra. O resto daquilo que somos apenas bate na porta inexistente. No momento que você quer algo do silêncio, você é novamente retirado do silêncio.

O silêncio só se revela a si mesmo. Só quando entramos como nada e permanecemos como nada é que o silêncio revela o seu segredo. O segredo é ele mesmo. É por isso que eu digo que todas as palavras, todos os livros, todos os ensinamentos e todos os professores só podem conduzir você até a porta, e talvez provocá-lo a entrar. Uma vez lá, você começa a sentir a presença do silêncio de forma muito poderosa. Quando isso acontece, alguma coisa surge espontaneamente e quer adentrar a porta sem ser alguém. Esse é o sagrado convite.  É do lado de dentro que você descobre que o silêncio é o último e derradeiro professor, e o último e derradeiro ensinamento. É o único professor que não falará com você. O silêncio é o único professor e ensinamento que nos mantém em nossa humanidade de joelhos o tempo todo. Com qualquer outro ensinamento ou professor, nós descobrimos que podemos levantar. Podemos pensar "Ah, eu ouvi o Adya falando blá-blá-blá e isso parece muito bom", e mesmo assim nos descobrirmos sendo retirados daquele chão que é a renúncia. Nós nos afastamos da nossa mais linda e sagrada humildade.

O silêncio é o melhor professor e melhor porque nele existe a interminável acolhida para que façamos aquilo que o nosso coração humano realmente deseja, que é estar sempre com os nossos joelhos no chão, estar sempre nesse tipo de devoção à Verdade. O silêncio é o único ensinamento e o único professor que está lá o tempo todo. Ele esta lá a cada minuto que você desperta, a cada minuto que você vive, a cada minuto que você respira.

Palo Alto, Califórnia, 12 de janeiro de 2002

ADYASHANTI.  Emptiness dancing, pp. 67-74, Sounds True, Inc., Canada:  2006, tradução Roberto Carlos de Paula.  Texto selecionado para estudo em Loja realizado em  07.10.14.

"Nenhum Teósofo, do menos instruído ao mais culto, deve pretender a infalibilidade no que possa dizer ou escrever sobre questões ocultas" (Helena P. Blavatsky, DS, I, pg. 208). A esse propósito, o Conselho Mundial da Sociedade Teosófica é incisivo: "Nenhum escritor ou instrutor, a partir de H.P. Blavatsky tem qualquer autoridade para impor seus ensinamentos ou suas opiniões sobre os associados. Cada membro tem igual direito de seguir qualquer escola de pensamento, mas não tem o direito de forçar qualquer outro membro a tal escolha" (Trecho da Resolução aprovada pelo Conselho Geral da Sociedade Teosófica em 23.12.1924 e modificada em 25.12.1996.

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