domingo, 19 de abril de 2015

Fidelidade

Extraído do livro “A Dança do Vazio”, de Adyashanti

Se você experimentar a realização do Eu, nunca o faça de modo leviano, porque no momento que a sua fidelidade à Verdade oscila, você cai novamente no isolamento. Se você não quer apenas provar da liberdade, mas ser a liberdade, você precisa ter uma fidelidade absoluta à Verdade, você tem que estar casado com essa fidelidade para sempre. Se a liberdade vai ser uma experiência viva e contínua, a sua parte humana precisa manter fidelidade à Verdade e se empenhar para viver essa Verdade. Para ser livre, a parte humana precisa estar comprometida com a Verdade para sempre.

As pessoas me perguntam o tempo todo: "Quando tudo isso vai acabar?". Eu entendo que elas estão equiparando a liberdade a não precisar apreciar cada momento de forma consciente, a não precisar extinguir coisa alguma delas mesmas, a não empreender o menor esforço. Obviamente a minha resposta é: "Nunca." Com isso não quero dizer que as pessoas jamais relaxem, mas sim, que relaxem apreciando. Nós podemos estar relaxados e, ao mesmo tempo, de coração aberto, disponíveis, verdadeiramente presentes. Quando fazemos isso, a relação se desdobra e as consequências disso são enormes. O que nos conduz à liberdade viva não é somente o ato de fixar a atenção, mas, também, o ato de fixar a apreciação. Precisamos não abdicar, ou melhor, jamais abdicar da nossa apreciação.

No momento que você quebra a sua fidelidade à Verdade, você expulsa a si mesmo da liberdade da Verdade. No momento que algo se torna mais importante do que a Verdade – seja isso o poder, o elogio, uma pessoa, um lugar, um objeto, o amor ao externo, o respeito, o reconhecimento –, você começa a sofrer e a sentir-se isolado. Só há espaço para a Verdade na Verdade. Isto significa que só há espaço para enxergar a Verdade, escolher a Verdade e amar a Verdade. Um compromisso rigoroso com a Verdade é uma escolha de momento a momento.

Se você está esperando que essa liberdade de escolha se torne automática e inevitável, você não está assumindo total responsabilidade por essa liberdade – a liberdade de escolher entre a Verdade e uma história confortável. A fidelidade rigorosa com a Verdade não é algo que se faça de modo leviano. Repetindo o terceiro patriarca Zen: quebrar um voto com a Verdade é separar o céu e a terra ao infinito. Quando algo perturbador se manifesta e há um momento em que você percebe que aquilo é um transe e apenas uma passagem de fenômenos, mas você finge que aquilo é real, é quando o céu e a terra se separam buum! Mas o céu pode abrir-se novamente no momento que você escolhe dizer a verdade, no momento que você enxerga – "Ah, isso é apenas uma passagem de fenômenos, é raiva, é tédio" –, sem nenhum esforço para mudar isso, simplesmente nomeando aquilo que é.

Não basta manter votos apenas por uma questão de manter votos. Fazer isso é quebrar o voto mais sagrado de todos: o voto de amar de coração aberto, o voto da mais profunda entrega ao coração. Não faça do compromisso algo leviano para você manter uma imagem ou teoria da Verdade. Isso é como você se recostar numa poltrona e dizer ao seu parceiro: - "Eu realmente não vou amar você, mas nós vamos ficar juntos porque eu disse que sim". Isso é quebrar o voto. Pode-se estar cumprindo a letra da lei, mas está faltando o verdadeiro significado, faltando o coração, faltando o amor, faltando a intimidade e a vulnerabilidade. Não basta fazer algo de uma forma mecânica; o seu coração e o seu ser precisam estar por trás disso. Sinta esse momento, enxergue-o com vontade de experimentá-lo profundamente, não importa que seja bom, ruim, ou indiferente. Esteja totalmente presente de emoção e sentimento, aqui mesmo, vulnerável, com o seu coração. Simplesmente esteja presente. Não viva a partir da sua mente condicionada, viva a partir da Verdade incondicional.

A Verdade ama. Ela não julga. Ela possui uma grande espada nas mãos e pode impiedosamente discernir o que é falso e o que é verdadeiro, e ela não guarda rancor. Se você não diz a verdade para si mesmo, você sofre. Se ela não fosse implacável, não haveria aprendizado. A Verdade não lhe dá tudo mastigado. Viva com a verdade ou sofra. É simples assim.

Quando você realmente desperta para a Verdade, você vê que em cada circunstância ou experiência você foi amado por ela sempre. É extraordinário perceber que subjacente a cada momento está o amor. Nunca houve uma vítima, nem sequer por um momento. E mesmo que possa ter parecido doloroso, era apenas o gume feroz da espada que lá estava para lhe fazer enxergar a Verdade. Aceitar isso é difícil, porque nos rouba todo o nosso complexo de vítima.

A Verdade adentra a existência dançando de várias formas, prazerosas e não prazerosas. Por trás de cada experiência está o amor. O compromisso de estar plenamente presente em todos os níveis do ser fecha o espaço entre você e o que está acontecendo, o espaço entre você e a experiência. Kwong Roshi costumava dizer com frequência: "Feche o espaço, nem que seja um pouquinho, feche o espaço." Então tudo se abre. Fechar o espaço entre o que é e o que você quer que seja. Fechar o espaço entre o que está se apresentando e o que você quer que se apresente. Esse espaço de julgamento é o isolamento que você sente. Você precisa escolher totalmente o que é, e dirigir-se nesse sentido com todo o seu ser.

Ora, é muito importante perceber que você não consegue fechar esse espaço por vontade própria, mas apenas por disposição espontânea. Se você tentar fechá-lo, esse espaço torna-se cada vez mais amplo. Mas ele pode fechar-se quando você está disposto a render-se ao que é. Quando o espaço entre o "eu" e a verdade do momento se fecha, a Verdade revela a si mesma, plenamente presente, revela o próprio Eu, ao qual me referi quando eu disse para você dirigir-se no sentido da vida, do momento e da riqueza do que é. Isso não é dirigir-se à dissociação transcendental. Pode ser, se você quiser, mas não é isso o que eu estou falando agora. Vá em frente e penetre a vulnerabilidade e a inocência. É como quando você está tendo uma conversa com alguém e a conversa começa a atingir aquele momento mágico em que ambos os interlocutores se apoiam e se tornam vulneráveis entre si. É nesse ponto que a magia acontece.

Há muitas maneiras desse espaço conseguir se fechar. Uma forma de ajudar o espaço a se fechar e de encontrar a quietude é quando você está sentado meditando. Fique sentado apenas. Quando o corpo se move respondendo à mente, isso atrapalha a quietude. Mas quando o corpo fica relaxado, parado, a mente começa a seguir o corpo, e o espaço pode se fechar. Então a quietude do momento pode começar a brilhar. Esteja consciente do que está causando o movimento. Isso é apenas a mente manifestando-se como corpo. Arrisque-se um pouco, seja um pouco vulnerável. Seja vulnerável o bastante para ficar acordado, para sentir a brisa fresca atiçando o fogo do coração.

O verdadeiro poder é o poder do amor, expressando apaixonadamente algo que existe bem lá no fundo. Isso vem do coração, da fartura; não vem de tentar preencher uma lacuna. Você pode sentir essa centelha de vida e amor através de tudo o que existe. Você a sente no ar, na forma de uma flor, na forma de uma folha, na forma do seu próprio corpo. Seus dedos não conseguem tocá-la. É a vida, e a vida transcende estar vivo. Os pensamentos morrem, os organismos morrem, as crenças morrem, a vida continua. A vida, Deus e o amor se manifestam de muitas maneiras: como sabedoria, como clareza e como um fogo que lhe queima para que você se movimente, para que você se liberte e desperte para a realidade.

Quando eu não estou na satsang, eu sou uma pessoa muito calma. O despertar pode assumir a forma de um coração, de uma brincadeira ou da quietude mais profunda que se possa imaginar. O elemento comum é a plenitude do vazio. Quando nós estamos realmente disponíveis, há uma riqueza. Mesmo quando tudo está vazio e silencioso e nada está acontecendo, há uma plenitude.

Você é o Dharma. Você é a vida. A flor e a árvore nada mais são do que a vida. Jamais se conquista a vida somente na sua expressão. A vida irá sempre oferecer expressões. Então, tudo isso vem, mais, mais e mais. Tudo isso vem do nada, assim como a flor que um dia não existe e no dia seguinte brota. A vida expressa a si mesma como uma flor, como um ser humano, como um insight, como uma perda de insight. Mas a vida não está limitada à sua expressão. Se o mundo inteiro explodisse, não haveria menos vida, haveria apenas menos manifestações. A vida ainda existiria. Você ainda existiria. Nós fazemos disso algo tão conceitual, mas se a Terra explodir, a vida ainda vai existir. Como disse Ramana Maharshi aos seus alunos preocupados porque ele estava morrendo: "Dizem que eu vou embora, mas para onde eu poderia ir?" A flor morrerá, mas a vida vai bem, obrigado. A expressão se vai, as percepções se vão, as personalidades mudam, as crenças mudam. Você permanece.


Los Gatos, Califórnia, 14 de junho de 2000



ADYASHANTI.  Emptiness dancing, pp. 233-238, Sounds True, Inc., Canadá: 2006, tradução Roberto Carlos de Paula.  Texto selecionado para estudo em Loja realizado em  14.04.15.

"Nenhum Teósofo, do menos instruído ao mais culto, deve pretender a infalibilidade no que possa dizer ou escrever sobre questões ocultas" (Helena P. Blavatsky, DS, I, pg. 208). A esse propósito, o Conselho Mundial da Sociedade Teosófica é incisivo: "Nenhum escritor ou instrutor, a partir de H.P. Blavatsky tem qualquer autoridade para impor seus ensinamentos ou suas opiniões sobre os associados. Cada membro tem igual direito de seguir qualquer escola de pensamento, mas não tem o direito de forçar qualquer outro membro a tal escolha" (Trecho da Resolução aprovada pelo Conselho Geral da Sociedade Teosófica em 23.12.1924 e modificada em 25.12.1996.

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