domingo, 19 de abril de 2015

Teosofia e a Sociedade Teosófica

Por J. Krishnamurti, do livro “O que te fará feliz?”
Conferência realizada em Benares, Índia, 06 de fevereiro de 1949

Pergunta: Vindes dirigindo uma cruzada contra a crença cega, a superstição e a religião organizada. Não terei razão em afirmar que, apesar de vossa condenação verbal das dou­trinas teosóficas, estais cumprindo o fato central da Teosofia? Vós estais pregando a legítima Teosofia. Não existe real contradição entre a vossa posição e a da Sociedade Teosófica, cuja eminente Presidente foi quem vos apresentou ao mundo.

Krishnamurti: Não entremos a discutir personalidades, a da Doutora Besant e a minha própria, porque, então, estaremos per­didos. Verifiquemos, antes, se de fato estou dirigindo uma cruzada contra a crença cega, a supersti­ção e a religião organizada. O que estou fazendo é apenas tentando expor um fato. Um fato pode ser interpretado por qualquer um em conformi­dade com o seu condicionamento, mas o fato continuará a ser um fato. Eu posso traduzi-lo em conformidade com meu gosto ou aversão, mas o fato não se altera.

Analogamente, uma crença, uma superstição, um dogma organizado da religião, não pode ajudar-vos a compreender a verdade. A verdade tem de ser contemplada sem a cortina protetora dessas coisas, e só então há compreensão, e não de acordo com os meus desejos; e as crenças orga­nizadas e as religiões, que são dogmas organiza­dos, não podem ajudar-me a compreender a vida. Podem ajudar-me a interpretar a vida de acordo com meu condicionamento, mas isso não é compreensão da vida, uma vez que significa que estou interpretando a vida em conformidade com meu instrumento, faculdade ou condicionamen­to. Mas tal não é experimentar a vida, e religião não significa experimentar a vida através de uma crença; religião é experimentar a vida di­retamente, sem condicionamento. Por Conse­guinte, é necessário que estejamos libertados da religião organizada, etc. etc.

Agora, qual é o ponto de vista teosófico? Uma vez que o autor da pergunta afirma que estou a cumprir o fato central da teosofia, pre­cisamos, tanto vós como eu, verificar qual é o fato central da Teosofia, segundo o interrogan­te. Qual é o fato central da Teosofia? Eu real­mente não o sei, mas vamos averiguá-lo. Quais são os fatos certos da Teosofia - sabedoria di­vina? É o que significa a palavra. (Interrupção). "Nenhuma religião acima da Verdade". É o esse o fato central?

A Teosofia e a Sociedade Teosófica são duas coisas diferentes. Pois bem, a qual das duas vos referis? Por favor, Senhor, deixai-me primeiramente afiançar-vos que não estou ata­cando nem defendendo. Nós queremos encon­trar a verdade desta questão; pelo menos eu o quero. Pode ser que não o queirais; pelo menos os aderentes, os que a ela se entregaram, que nela tem interesses adquiridos, esses susten­tam que o que eu digo é Teosofia. Mas essas pessoas não são investigadores da Verdade, pois estão na dependência de seus interesses adquiridos, na esperança de sua recompensa; por conseqüência, não estão à procura da Verdade.

Pois bem: precisamos verificar se há dife­rença entre a Teosofia e a Sociedade Teosófica. É bem certo que os ensinamentos do Cristo são diferentes da Igreja. Os ensinamentos do Buda diferem do Budismo, a religião organi­zada. Isso é evidente. A doutrina é uma coisa, a sociedade organizada, a doutrina organizada, é outra coisa - não é verdade?

Nessas condições, a Teosofia e a Socieda­de Teosófica são duas coisas diferentes, não são? Ora bem, que desejais achar, o fato cen­tral da Teosofia ou a Sociedade Teosófica? Se vos interessa o fato central da Teosofia, que é sabedoria divina, como ireis descobri-lo? Isto é, o fato central da Teosofia é a sabedoria, não é verdade? Chamai-o sabedoria divina, ou humana, não importa o nome. Ora, a sabedoria se procura num livro, a sabedoria é transmiti­da por outro, a sabedoria pode ser descrita, expressa em palavras, "verbalizada", aprendida e repetida? Isso é sabedoria? Quando eu repi­to a "verbalização" da experiência do Buda, isso é sabedoria? Tal repetição não é uma mentira? A sabedoria não deve ser experimen­tada diretamente? E não me é possível experimentar a sabedoria, quando tenho somente informação relativa à experiência de outro. Senhores, aqueles de vós que desejais descobrir o fato central da Teosofia, tende a bondade de escutar com toda a atenção, e não fecheis os ouvidos. Pode a sabedoria ser organizada e espalhada, como se espalha propaganda política ou opiniões políticas? Pode a sabedoria ser organizada e propagada para benefício de outros? A sabedoria pode ser colhida através da autoridade? A sabedoria não é atingível através da experiência direta, e não por meio da técnica de conhecer o que outro disse a respeito da sabedoria? Ora bem, quando dizeis que não há religião acima da verdade, significa isso que o fato central da Teosofia é descobrir a Verdade, não é? Descobrir a Verdade, compreendê-la. E amá-la, não é assim? Mas a Verdade é coisa que se possa repetir e aprender? Pode-se aprender uma Verdade, assim como se aprende uma técnica? Não é preciso experimentá-la diretamente, senti-la direta­mente, conhecê-la diretamente? Não estou afirmando que tudo isso não esteja implicado na Teosofia. O que estamos discutindo é sobre o que constitui o fato central. Não li livros teosóficos e muito menos livros religiosos. Provavelmente por esta razão pode-se pensar um pouco mais livremente a respeito de tais assuntos.

Pois bem: pode o fato central da Teosofia, que é a sabedoria, a Verdade, ser expres­so através de uma sociedade organizada? Ou pode uma sociedade organizada ajudar uma outra a alcançá-lo? Deixemos, pois, por ora, este assunto, isto é, o fato central da Teo­sofia.

Consideremos, agora, a Sociedade Teosófica. Agora prestais atenção. Não sei por que estais interessado em tudo isso.

Ora, que é uma sociedade organizada, qual a função de uma sociedade organizada – não como desejaríeis que ela fosse, mas como é realmente, de fato? Qual é a função de uma sociedade organizada, especialmente uma de tal natureza? Propagar a sabedoria, não é ver­dade? E depois? Traduzir essa sabedoria, estabelecer uma plataforma para as pessoas se reunirem à sua procura? Diríeis que sim, não diríeis? Isto é, uma sociedade organizada para congregar aqueles que desejam procurar a verdade e a sabedoria? Decerto. Não? (Inter­rupção). Senhor, não estou procurando enlear­vos, pois, afinal de contas, uma corporação or­ganizada existe para algum fim. Imediatamen­te nos tornarmos propugnadores, ele de um lado, e eu do outro. EIe, o chefe de uma sociedade ou seção da sociedade, e eu, seu opositor. Senhor, permiti-me dizer-vos que não sou vosso opositor; mas eu sinto, ao contrário, que tais sociedades representam um empecilho à com­preensão.

Porque existe a vossa Sociedade? Para propagar idéias? Ou para ajudar os indiví­duos a procurarem o fato central da Teosofia? Ou para atuar como uma "plataforma de tole­rância", de sorte que as pessoas de opiniões diferentes possam traduzir a verdade de acordo com o seu condicionamento? Ou sois um grupo de pessoas que sentis afinidades umas com as outras, e dizeis: "Fazemos parte desta Sociedade, porque temos comunhão de opi­niões"; ou vos reunistes com o fim de pro­curar a Verdade e ajudar-vos uns aos outros a achá-la. Estas são quatro possibilidades. Pois bem: todas elas se resolvem em duas: que nos juntamos em sociedade, com o fim de descobrir a Verdade, e de propagar a Verdade. Ora, pode-se propagar a Verdade, e pode-se procurar a Verdade? Examinemo-lo.

Pode-se propagar a verdade ? Pensais, por exemplo, que a reencarnação é um fato. Estou-o tomando para exemplo; dizeis: "Vamos pro­pagar este fato; ele beneficiará muitas pessoas, aliviando-lhes os sofrimentos, etc." - o que significa que vós conheceis a verdade da reen­carnação. Conheceis a verdade da reencarnação, ou conheceis apenas a expressão verbal de uma idéia de que há continuidade? Vós o lestes num livro, e o propagais, propagais as palavras. Compreendeis, Senhor? Isso é disseminar a Verdade? Pode-se propagar a Verdade? Mas vós podeis voltar-vos e perguntar-me: "E vós, que estais fazendo?" Digo-vos que não estou propagando a Verdade; estamo-nos ajudando mutuamente a ser livres, a fim de fazer vir a nós a Verdade. Não estou propagando, não vos estou dando uma "idéia". Estou-vos ajudando a ver quais são os obstáculos que vos impedem de experimentar diretamente a Verdade. A pes­soa que propaga a Verdade, fala a Verdade? Por favor, esta questão é muito seria. Podeis fazer propaganda, mas essa propaganda não é a Verdade, é? Estais unicamente espalhando a palavra "verdade", ou "reencarnação", ou a estais explicando; mas a palavra "verdade" não é a Verdade. A Verdade precisa ser experimentada, e por conseguinte a vossa propa­ganda é meramente verbal, inverídica.

O outro ponto é o seguinte: As pessoas se reúnem para procurar a verdade, isto é, uma parte dela. Ora, pode-se procurar a Verdade, ou ela vem a nós? Há nisso uma enorme diferença. Se procurais a Verdade, é porque dese­jais servir-vos da Verdade, utilizá-la como uma proteção ou com o fim de alcançar conforto, segurança, isto ou aquilo; quereis usá-la como um meio de satisfação própria, ou o que quer que seja. Quando procuro alguma coisa, tal é o meu objetivo; não nos iludamos com pala­vreados. Quando ambiciono o poder, procuro alcançá-lo para servir-me dele. Além disso, quando buscais a Verdade, isso significa que já a conheceis; pois não podemos procurar uma coisa que não sabemos o que é. E se a conhe­ceis, quereis servir-vos dela. O que conheceis representa um meio para vossa própria proteção e, por conseguinte, não é a verdade. Pode achar-se a Verdade ou pode receber-se a Verdade através da crença?

Ora bem, ao discorrermos sobre a Socieda­de Teosófica, deveis compreender, natural­mente, que ela não me interessa, pois estou fora dela, completamente. Vós desejais saber se o que estou dizendo e ensinando, o fato central da Teosofia, e a Sociedade Teosófica, são a mesma coisa. Digo que, obviamente, não são. Gostaríeis de o remendar, dizendo: "Fomos nós que vos produzimos e, por conseqüência, vós sois urna parte de nós, como uma criança é parte do pai e da mãe". Tal é um argumento muito cômodo, mas, em verdade, o filho é intei­ramente diferente do pai, logo que fica um pou­quinho mais velho.

Positivamente, Senhor, quando estais em­penhados, mais e mais, em "vir a ser”, quando estais, espiritualmente, a galgar a escada, vós estais negando a verdade, não estais? A Ver­dade não se acha no alto da escada; a Verdade está onde vós estais, naquilo que fazeis, pen­sais, sentis, quando beijais e abraçais, e quando explorais. Cabe-vos ver a Verdade de tudo isso, e não uma verdade que se acha no fim de inumeráveis ciclos da vida. Julgar que podeis ser um Buda, algum dia, é somente mais uma glorificação "projetada" de vós mesmos. É pensar imaturo, indigno de pessoas desper­tas, profundamente meditativas e afetivas. Se pensais que sereis alguma coisa no futuro, vós não o sois agora. O que tem importância é o agora, e não o amanhã. Se não sois fraternal agora, não sereis fraternal amanhã, porque ama­nhã é também agora.

Vós vos juntastes como Sociedade e me perguntais se vós e eu estamos de acordo. Res­pondo que não. Podeis fazer que fiquemos de acordo, porquanto podeis torcer alguma coisa de acordo com a vossa conveniência. Podeis sus­tentar que o preto é branco; mas uma mente que não é direta, que é incapaz de percepção imediata das coisas, tais como elas são, só pensa nos seus interesses adquiridos, na crença, na propriedade, ou na chamada condição espiritual. Não vos estou aconselhando a deixar a vossa Sociedade. Não me interessa absolutamente que a deixeis ou não a deixeis. Mas, se vos julgais empenhados na busca da verdade e se vos juntastes com o fim de achar a Realidade, ouso crer que estais procedendo de maneira muito errada. Podeis dizer: “Tal é a vossa opinião”. E eu direi que tendes toda a razão. Se dissésseis: "Nós estamos procurando ser fraternais" – eu diria, mais uma vez, que estais seguindo o caminho errado, porquanto a fra­ternidade não se acha no fim da passagem; e se dissésseis que estais cultivando a tolerância e a fraternidade, eu diria que fraternidade e to­lerância não existem. Não podem ser cultiva­das. Não se cultiva a tolerância. Quando amais alguém, vós não cultivais a tolerância. É somente o homem que não tem amor no coração, que cultiva a tolerância. Isso é também uma sutileza do intelecto. Se dissésseis que vossa Sociedade não se baseia, absolutamente, na crença, quer interna, quer externamente, eu diria, então, que tanto pelas vossas ações externas como pelas internas, vós sois um fator de separação, e não de união. Tendes rituais secretos, doutrinas secretas, Mestres secretos, e tudo isso indica separação. É a própria função de uma sociedade organizada o estar separada, neste sentido.

Assim, pois, entrando mui profundamente no assunto, podemos verificar que vós, a Sociedade Teosófica, e eu, não estamos em con­formidade. Ser-vos-ia grato, talvez, que estivéssemos de acordo, mas isso já é assunto in­teiramente diferente – o que não significa que devais abandonar o vosso campo e passar para o meu. Não há “este” ou “aquele campo”; não há partidos da Verdade. A Verdade é a Verdade, uma só, única. Ela não tem partidos; não tem caminhos; nenhum caminho conduz à Verdade. Não há caminho da Verdade; ela tem de vir a vós.

A Verdade só pode vir a vós quando vossa mente e coração são simples e claros, e existe amor no vosso coração, e não se vosso coração está cheio das coisas da mente. Quando há o amor em vosso coração, vós não falais da ne­cessidade de se formar uma organização para que haja a fraternidade; não falais de crença, nem falais de divisão, ou dos poderes que geram a divisão. Não precisais procurar conciliação. Sois, então, um ente humano simples, sem rótulos e sem pátria. Significa isso que precisais despojar-vos de todas essas coisas, para que a Verdade possa manifestar-se. E ela só pode vir quando a mente está vazia, quando a mente desiste de criar. Ela virá então, sem a chamar­des. Virá, veloz como o vento, sem ser pressen­tida. A Verdade vem no escuro e não quando estamos à sua espreita, desejando-a. Ela surge, súbita como a luz do sol, pura como a noite, mas, para a receber, deve o coração estar cheio e a mente vazia. Vossa mente está agora cheia e vosso coração vazio.


Texto selecionado pelo irmão Márcio Douglas para estudo em Loja em 10.03.15.

"Nenhum Teósofo, do menos instruído ao mais culto, deve pretender a infalibilidade no que possa dizer ou escrever sobre questões ocultas" (Helena P. Blavatsky, DS, I, pg. 208). A esse propósito, o Conselho Mundial da Sociedade Teosófica é incisivo: "Nenhum escritor ou instrutor, a partir de H.P. Blavatsky tem qualquer autoridade para impor seus ensinamentos ou suas opiniões sobre os associados. Cada membro tem igual direito de seguir qualquer escola de pensamento, mas não tem o direito de forçar qualquer outro membro a tal escolha" (Trecho da Resolução aprovada pelo Conselho Geral da Sociedade Teosófica em 23.12.1924 e modificada em 25.12.1996.

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