quarta-feira, 15 de agosto de 2012

O vazio interior

Ela carregava uma grande cesta na cabeça, segurando-a com a mão; provavelmente, a cesta era bastante pesada, mas o gingado de seu caminhar não era alterado pelo fardo. A mulher tinha uma bela postura, e seus passos eram fáceis e rítmicos.

No braço, grandes pulseiras de metal produziam um ligeiro tilintar, e seus pés estavam calçados em sandálias velhas e desgastadas. Seu sari estava rasgado e encardido pelo longo uso. Em geral, andava com várias companheiras, todas carregando cestas, mas, nesta manhã, estava sozinha na estrada rústica.

0 sol ainda não estava muito quente e, no alto do céu azul, alguns abutres voavam em amplos círculos, sem um só movimento das asas. 0 rio corria silenciosamente junto à estrada. Era uma manhã muito tranquila, e a mulher solitária com a grande cesta na cabeça era coma um foco de beleza e graça; tudo parecia apontar para ela e aceitá-la como parte do próprio ser. Ela não era uma entidade separada, mas parte de você e de mim, e também daquela tamarindeira. Ela não andava na minha frente, mas, na verdade, eu caminhava com o cesto sobre minha cabeça.

Não foi uma ilusão, uma identificação calculada, desejada ou cultivada - algo que seria colossalmente lamentável-, mas uma experiência natural e imediata. Os poucos passos que nos separavam desapareceram; o tempo, a memória e a ampla distância que o pensamento engendra evaporaram por completo. Havia apenas aquela mulher, e não eu olhando para ela.

Seria um longo caminho até o povoado, no qual ela venderia o conteúdo de sua cesta. Ao entardecer, retornaria por essa estrada e atravessaria a pequena ponte de bambu em seu caminho para a aldeia, apenas para reaparecer na manhã seguinte com a cesta cheia.

Ele era muito sério, e já não era jovem, mas tinha um sorriso agradável e gozava de boa saúde. Sentado no chão, as pernas cruzadas, ele explicou num inglês um tanto hesitante, de que tinha certa vergonha, que frequentara a faculdade e conquistara seu diploma de mestrado, mas fazia tantos anos que não falava inglês que praticamente havia esquecido. Ele lia muitos textos em sânscrito e palavras do idioma eram frequentemente proferidas por seus lábios, Disse que viera para fazer várias perguntas sobre o vazio interior, o vazio da mente.

Em seguida, começou a cantar em sânscrito, e a sala ficou imediatamente repleta de uma profunda ressonância, pura e penetrante. Ele continuou cantando por algum tempo, e era um prazer ouvi-lo. Seu rosto se iluminava com a entonação que ele dava a cada palavra, e com o amor que sentia pelo que cada uma continha. 0 homem era desprovido de qualquer artifício, e demasiadamente sério para querer se exibir.

"Estou muito contente por ter cantado estes slokas* em sua presença. Para mim, eles têm grande significado e beleza; por muitos anos, tenho meditado sobre eles, e conclui que representam fonte de orientação e de força para mim. Eu me disciplinei para não me comover com facilidade, mas estes slokas me trazem lágrimas aos olhos. 0 próprio som das palavras, com seu rico significado, invade meu coração, e logo a vida já não é labuta e tristeza. Como qualquer ser humano, conheço o sofrimento; vi a morte e a dor na vida. Tive uma esposa que morreu antes que eu deixasse os confortos da casa de meu pai, e agora sei o que significa a pobreza voluntária. Estou contando tudo isso apenas em caráter explicativo. Não me sinto frustrado, solitário ou algo parecido. Meu coração se alegra em muitos aspectos, mas meu pai costumava me falar sobre suas palestras, e um conhecido me encorajou a procurá-lo; e, assim, aqui estou eu."

"Desejo que você me fale sobre o vazio imensurável", continuou ele.

Depois, ele citou um sloka para explicar e corroborar sua experiência.

Se me permite dizer, a autoridade de outro, independente do tamanho, não é prova da verdade da própria experiência. A verdade não precisa ser provada pela ação, não depende de qualquer autoridade; assim, deixemos de lado toda autoridade e tradição, e tentemos descobrir a verdade desse tema por nos mesmos.

"Isso seria muito difícil para mim, porque estou mergulhado em tradição - não a tradição do mundo, mas os ensinamentos do Gita, dos Upanishads e assim por diante. Seria correto que eu abandonasse tudo isso? Não seria ingratidão de minha parte?"


Não há envolvimento de gratidão ou ingratidão de forma alguma; estamos interessados em descobrir a verdade ou a falsidade do vazio que você mencionou. Se caminhar na senda da autoridade e da tradição, que é o conhecimento, experimentará apenas o que deseja, auxiliado por autoridade e tradição. Não será uma descoberta; será algo já familiar, algo a ser reconhecido e experimentado. A autoridade e a tradição podem estar equivocadas podem ser uma confortadora ilusão. Para descobrir se esse vazio é verdadeiro ou falso, se existe ou se é apenas uma fantasia a mente deve livrar-se da teia de autoridade e tradição.

"Será a mente capaz de se libertar dessa teia?"

A mente não pode libertar a si mesma, pois todos os seus esforços para se libertar apenas tecem outra teia, na qual ela novamente se prenderá. A liberdade não é um oposto; ser livre não é estar livre de algo não é um estado de libertação de um cativeiro. 0 anseio por ser livre gera o próprio cativeiro. A liberdade e um estado de ser que não resulta do anseio por ser livre. Quando a mente compreende isso, e vê a falsidade da autoridade e da tradição, só então o falso se extingue.

"Talvez eu tenha sido induzido a sentir certas coisas por minhas leituras e pelos pensamentos baseados nessas leituras; mas, afora tudo isso desde a infância senti vagamente, como num sonho, a existência desse vazio. Sempre houve uma insinuações dele, um sentimento de nostalgia por ele; e, à medida que ficava mais velho minhas leituras de vários livros religiosos apenas reforçaram esse sentimento, dando-lhe mais vitalidade e intenção. Mas começo a perceber o que você quer dizer. Venho dependendo quase inteiramente da descrição das experiências dos outros, como dada nas Sagradas Escrituras. Posso abandonar essa dependência, já que agora vejo a necessidade de fazê-lo, mas será que posso reviver o sentimento original e incontaminado daquilo que está além das palavras?"

O que é revivido não é o vivo, o novo; é uma lembrança, algo morto, e você não pode dar vida ao que esta morto. Reviver e viver da memória e tornar-se escravo da estimulação, e uma mente que depende de estímulo consciente ou inconsciente, inevitavelmente se torna embotada e insensível Reviver implica perpetuar a confusão; retornar ao passado morto num momento de crise e buscar um padrão de vida que tem raízes na decadência Aquilo que você vivenciou na juventude, ou ainda ontem, esta acabado e desaparecido; e se você se apega ao passado, impede a experiência desperta do novo.


"Como imagino que você percebe, realmente estou determinado, e para mim tornou-se uma necessidade urgente compreender e pertencer aquele vazio. O que devo fazer?"

E preciso esvaziar a mente daquilo que se sabe; todo conhecimento que se acumulou deve deixar de exercer qualquer influência sobre a mente viva. O conhecimento está sempre no passado, é o próprio processo do passado, e a mente deve estar livre desse processo. O reconhecimento é parte do processo de conhecimento, não é?

"Como?"

Para reconhecer algo, você precisa já tê-lo conhecido ou vivenciado, experiência armazenada como conhecimento, memória. 0 reconhecimento vem do passado. Há muito tempo você talvez tenha experimentado esse vazio, e, após experimentá-lo, anseia por ele. A experiência original aconteceu sem que você a buscasse; mas agora você a busca, e aquilo que está buscando não é o vazio, mas a renovação de uma antiga memória. Para que aconteça novamente, toda lembrança dele, todo conhecimento sobre ele, deve desaparecer. Toda busca nesse sentido deve cessar, pois a busca e baseada num desejo de vivenciar.

"Você realmente está dizendo que não se deve buscar? Isso parece inacreditável!"

O motivo da busca é mais significativo que a própria busca. Esse motivo permeia, guia e molda a busca. O motivo de sua busca é o desejo de vivenciar o incognoscível, de conhecer seu êxtase e imensidão. Esse desejo dá origem ao experimentador, aquele que anseia pela experiência. O experimentador busca uma experiência maior, mais vasta e significativa. Como todas as outras experiências perderam seu gosto, o experimentador, agora, anseia pelo vazio; ou seja, há o experimentador e a coisa a ser experimentada. Daí se põe em marcha o conflito entre ambos, entre aquele que busca e o que é buscado.

"Isso eu compreendo muito bem, pois é exatamente o estado em que me encontro. Vejo agora que estou preso numa teia que eu mesmo construi."

Assim como está todo aquele que busca, e não apenas quem busca a verdade, Deus, o vazio e assim por diante. Todo homem ambicioso ou ganancioso que busca poder, posição, prestígio, dos os idealistas, cada devoto do Estado, cada construtor de uma perfeita utopia - todos são prisioneiros na mesma teia. Mas, uma vez que você compreenda o pleno significado da busca, continuará buscando o vazio?

"Percebo o significado interno de sua pergunta, e já parei de buscar."

Se é assim, então qual e o estado da mente que não esta buscando?

"Não sei; tudo isso é tão novo para mim que terei de me recolher e observar. Posso refletir por alguns minutos antes de prosseguirmos?”

Após uma pausa, ele continuou.

"Percebo o quanto é extraordinariamente sutil; como é difícil ao experimentador, ao observador, não interferir. É quase impossível que o pensamento não crie o pensador; mas, enquanto houver um pensador, um experimentador, obviamente haverá separação daquilo que é experimentado e conflito. Você está perguntando qual é o estado da mente quando não há conflito, não é?"

O conflito existe quando o desejo assume a forma do experientador e busca aquilo que deve ser experimentado; pois aquilo que deve ser experimentado também é inventado pelo desejo.

"Por favor, tenha paciência comigo, e me ajude a compreender o que você está dizendo. 0 desejo não apenas constrói o experimentador, o observador, mas também gera aquilo que deve ser experimentado, o observado. Portanto, é a causa da divisão entre aquele que experimenta e a coisa a ser experimentada, e é essa divisão o que sustenta o conflito. Pois bem, você pergunta: qual é o estado da mente que já não está em conflito, que não é movido pelo desejo? Mas essa questão pode ser respondida sem o observador, que observa a experiência da ausência de desejo?"

Quando você se torna ciente de sua humildade, ela acaba, não e? Existe virtude quando você deliberadamente a pratica? Tal prática é o fortalecimento da atividade autocentrada, que põe um fim a virtude. No momento em que você percebe que está feliz, deixa de estar feliz. Qual é o estado da mente que não se acha presa no conflito do desejo? O anseio por descobrir é parte do desejo que gera o experimentador e a coisa a ser experimentada, não é?

"É verdade. Sua pergunta foi uma armadilha para mim, mas eu lhe agradeço por ter perguntado. Agora, percebo mais das intrincadas sutilezas do desejo."

Não foi uma armadilha, mas uma pergunta natural e inevitável que você teria feito a si mesmo no curso do questionamento. Se a mente não se encontra extremamente alerta, perceptiva, logo se vê novamente presa na teia do próprio desejo.

"Uma ultima pergunta: é realmente possível que a mente fique totalmente livre do anseio por experiência, que é o que sustenta a divisão entre o experimentador e a coisa a ser experimentada?"

Descubra, senhor. Quando está completamente livre dessa estrutura do desejo, a mente é diferente do vazio? [Extraído do livro “Comentários sobre o viver” (Terceira série), de J.Krishnamurti]

Texto selecionado pela irmã Eliane Zaranza para estudo em Loja realizado em 14 de agosto de 2012.


"Nenhum Teósofo, do menos instruído ao mais culto, deve pretender a infalibilidade no que possa dizer ou escrever sobre questões ocultas" (Helena P. Blavatsky, DS, I, pg. 208). A esse propósito, o Conselho Mundial da Sociedade Teosófica é incisivo: "Nenhum escritor ou instrutor, a partir de H.P. Blavatsky tem qualquer autoridade para impor seus ensinamentos ou suas opiniões sobre os associados. Cada membro tem igual direito de seguir qualquer escola de pensamento, mas não tem o direito de forçar qualquer outro membro a tal escolha" (Trecho da Resolução aprovada pelo Conselho Geral da Sociedade Teosófica em 23.12.1924 e modificada em 25.12.1996.

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