terça-feira, 11 de fevereiro de 2014

Contradição

Texto selecionado pela irmã Hilda Garcia para estudo em Loja em 11.02.14


VEMOS CONTRADIÇÃO TANTO em nós mesmos como ao nosso redor. E é por vivermos em contradição que há carência de paz, dentro e fora de nós. Estamos num estado constante de negação e afirmação, o que queremos ser e o que realmente somos. O estado de contradição cria conflito, e esse conflito não gera paz, um fato simples e óbvio. Essa contradição interior não é para ser interpretada como algum tipo de dualismo filosófico, porque esse é um mero de fuga muito fácil. Quando dizemos que contradição e um estado de dualismo, pensamos que a solucionamos, o que não passa de algo convencionado que nos ajuda a fugir da realidade.

O que o conflito e a contradição significam para nós? Por que há contradição em mim, essa constante luta para ser algo diferente do que sou? Sou isto, quero ser aquilo. Essa contradição que existe em nós é um fato, não um dualismo metafísico. A metafísica não tem importância para a compreensão do que é.

Podemos, digamos, discutir o dualismo, o que é, se existe, e por aí adiante. Mas de que nos servirá isso se não soubermos que há contradição em nós, desejos opostos, interesses opostos, buscas opostas? Quero ser bom e não sou capaz de sê-lo. Essa contradição tem de ser compreendida, porque cria conflito, e no conflito, na luta, não podemos criar coisa alguma. Sejamos claros sobre o estado em que nos encontramos. Como há contradição, obrigatoriamente há luta, e luta é destruição, ruína. Nesse estado, não podemos produzir nada além de antagonismo, rivalidade, mais amargura e sofrimento. Se pudermos entender isso com clareza, assim livrando-nos da contradição, haverá paz interior, que, por sua vez, promoverá a compreensão entre nós e os outros.

Ao vermos que o conflito é destrutivo, ruinoso, perguntamos por que, então, há contradição em cada um de nós. O problema é exatamente esse, e para compreendê-lo, é preciso ir um pouco além. Por que existe o senso de desejos opostos? Não sei se percebemos dentro de nós essa contradição, esse modo de querer e não querer, de lembrar alguma coisa e querer esquecê-la para encontrar algo novo. Observe como isso acontece, como é simples e normal. Não se trata de nada extraordinário. O fato é que existe contradição. E como ela surge?

Quando falamos em contradição, o que queremos dizer? Não estamos nos referindo a um estado impermanente, ao qual se opõe outro estado impermanente? Por exemplo, penso que tenho um desejo permanente, mas outro desejo aparece, contradizendo-
o, e essa contradição gera conflito, que é destrutivo. Isso equivale a dizer que um desejo está sempre negando outro, há sempre uma busca superando. outra. Pergunto, então, se há desejo permanente. Todo desejo é impermanente, não metafisicamente, mas de fato. Quero um emprego, isto é, espero que um emprego me traga felicidade, mas, quando o encontro, não fico satisfeito. Quero ser o gerente da empresa, depois o proprietário, e assim por diante. Isso não acontece apenas no campo material, mas também no chamado campo espiritual – o professor quer ser o diretor da escola, o padre quer ser o bispo, o discípulo quer ser o mestre.

Esse constante querer tornar-se alguma coisa, chegar a uma situação após a outra, cria contradição, não é? Assim, por que não olhar a vida não como um permanente desejo, mas como uma série de desejos passageiros, sempre se opondo uns aos outros? Dessa maneira, a mente não precisará estar em estado de contradição. Se eu olhar a vida como uma série de desejos temporários, não como um desejo permanente, não haverá contradição.

A contradição surge apenas quando _a mente fixa-se em um desejo, isto é, quando não vê todos os desejos como mutáveis, transientes, mas agarra-se a um e o transforma em permanente, gerando contradição, quando outros desejos se manifestam. Todos os desejos estão em constante movimento, não há fixação de desejo. Não há um ponto fixo no desejo, mas a mente estabelece um, porque isso oferece um meio de conseguir, de ganhar, mas a contradição - o conflito - inevitavelmente aparece assim que conseguimos, assim que ganhamos. Você quer conseguir alguma coisa, quer ser bem-sucedido, quer encontrar um Deus ou uma verdade supremos, esperando alcançar satisfação permanente. Dessa forma, não está procurando a verdade, não está procurando Deus, mas satisfação duradoura. Você veste essa satisfação com uma ideia, dá-lhe um nome respeitável, como Deus, ou verdade, mas a realidade é que todos estamos buscando satisfação, e a colocamos no ponto mais alto, chamando-a Deus, sendo que o ponto mais baixo é a bebida. Como a mente está em busca de satisfação, não há muita diferença entre Deus e a bebida. Beber socialmente pode ser ruim, mas o desejo psicológico de gratificação, ganho, é ainda mais prejudicial, não é? Se você quer realmente encontrar a verdade, precisa ser honesto, não apenas da boca para fora, mas completamente. Precisa estar totalmente receptivo, e isso não será possível se você não estiver disposto a encarar os fatos.

Então, o que provoca contradição em nós? Sem dúvida, é o desejo de nos tornarmos alguma coisa. Cada um de nós quer ser bem-sucedido no mundo e, psicologicamente, alcançar certo resultado. Enquanto pensarmos em termos de tempo, realização, posição, sempre haverá contradição. Afinal, a mente é produto do tempo. Embora baseada no ontem, no passado, com o pensamento funcionando no campo do tempo, a mente pensa em termos de futuro, de se tornar, de ganhar, de realizar, e isso causa contradição, porque permanecemos incapazes de ver, exatamente, o que é. Apenas por meio da compreensão, de uma conscientização parcial do que é, pode haver libertação desse fator de desintegração que é a contradição.

Desse modo, é essencial compreendermos o processo total de nosso pensamento, pois é nele que existe a contradição. O próprio pensamento tornou-se uma contradição, porque não compreendemos o processo total de nós mesmos, e ter essa compreensão só é possível quando temos completa conscientização de nosso pensamento, não como um observador explorando seu pensamento, mas integralmente e de modo neutro, o que é muito difícil. Só então acontece a dissolução da contradição, que é tão nociva, tão dolorosa.

Enquanto estivermos tentando obter um resultado psicológico, enquanto quisermos segurança interior, haverá uma contradição em nossa vida. Penso que a maioria de nós não percebe essa contradição ou, se a percebe, não vê o seu real significado. Pelo contrário, a contradição nos dá o ímpeto de viver, e o elemento de fricção que lhe é próprio faz-nos sentir que estamos vivos. O esforço, ou seja, a luta da contradição, nos proporciona senso de vitalidade. É por isso que gostamos de guerras, é por isso que apreciamos a batalha das frustrações. Enquanto houver o desejo de alcançar um resultado, que é o desejo de segurança psicológica, haverá contradição, e onde há contradição não pode haver mente silenciosa. O silêncio da mente é essencial para a compreensão do significado integral da vida. O pensamento nunca está tranquilo. Ele, que é produto do tempo, não consegue encontrar aquilo que é atemporal, não consegue conhecer o que está além do tempo. A própria natureza de nosso pensamento é uma contradição, porque estamos sempre pensando em termos de passado ou de futuro, de modo que nunca estamos completamente cônscios do presente.

Estar plenamente cônscio do presente é uma tarefa árdua, porque a mente é incapaz de encarar um fato diretamente, sem dissimulação. O pensamento é produto do passado, por isso só pode pensar em termos de passado ou de futuro; não consegue perceber completamente um fato do presente. Quando o pensamento, produto do passado, tenta eliminar a contradição e todos os problemas que ela cria, está simplesmente buscando um resultado, tentando atingir um fim, e com isso, consegue apenas criar mais contradição e, consequentemente, conflito, infelicidade e confusão em nós e à nossa volta.

Para nos livrarmos da contradição, temos de estar cônscios do presente, 'sem escolha. E como pode haver escolha, diante de um fato? É óbvio que a compreensão do fato se torna impossível quando o pensamento está agindo sobre ele em termos de transformação, de alteração. Dessa forma, o autoconhecimento é o começo da compreensão. Sem ele, a contradição e o conflito continuarão. Conhecer o processo total de nós mesmos não requer nenhum perito, nenhuma autoridade. A busca de autoridade apenas cria o medo. Nenhum perito, nenhum especialista pode nos dizer como compreender o nosso próprio processo. É preciso que cada um estude a si mesmo. Você e eu podemos ajudar um ao outro, conversando sobre isso, mas ninguém pode nos revelar o processo de nosso ser. Nenhum especialista, nenhum professor, pode fazer isso por nós. Podemos conhecer esse processo apenas em nosso relacionamento com as coisas, a propriedade, as pessoas e ideias. Nesse relacionamento, descobriremos que a contradição surge quando a ação aproxima-se de uma ideia. A ideia é simplesmente a cristalização do pensamento como um símbolo, e o esforço para vivermos à altura desse símbolo cria uma contradição.

Portanto, enquanto houver um padrão de pensamento, a contradição continuará existindo. Para acabar com esse padrão, assim, com a contradição, é preciso autoconhecimento. A compreensão de si mesmo não é um privilégio reservado a poucos. Podemos compreender a nós mesmos pelo que falamos diariamente, pelo que pensamos e sentimos, pelo modo como olhamos os outros. Se pudermos estar cônscio de cada pensamento, cada sentimento, em todos os momentos, veremos que é em nosso relacionamento com tudo o que nos rodeia que nosso modo de ser pode ser compreendido. Só então haverá a possibilidade de alcançarmos a tranquilidade da mente, o único estado em que a realidade passa a existir.


KRISHNAMURTI, J. A primeira e última liberdade, pp. 85-90, Ed.Nova Era.


"Nenhum Teósofo, do menos instruído ao mais culto, deve pretender a infalibilidade no que possa dizer ou escrever sobre questões ocultas" (Helena P. Blavatsky, DS, I, pg. 208). A esse propósito, o Conselho Mundial da Sociedade Teosófica é incisivo: "Nenhum escritor ou instrutor, a partir de H.P. Blavatsky tem qualquer autoridade para impor seus ensinamentos ou suas opiniões sobre os associados. Cada membro tem igual direito de seguir qualquer escola de pensamento, mas não tem o direito de forçar qualquer outro membro a tal escolha" (Trecho da Resolução aprovada pelo Conselho Geral da Sociedade Teosófica em 23.12.1924 e modificada em 25.12.1996.

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