O
termo 'rimé' (ris med) é uma palavra comum
no idioma tibetano, e significa 'imparcial.' Ela foi adotada por Jamgon Kongtrul no décimo nono século para
identificar uma abordagem não-sectária do Budismo no Tibete - a abordagem Rimé. Literalmente, ris significa 'parte' ou 'lado', e med significa 'sem'; assim Rimé
quer dizer 'imparcial' ou 'sem preconceito.' Rimé às vezes foi traduzido como “eclético”, mas isso poderia sugerir
jogar coisas diferentes juntas e misturá-las, o que não é o correto. Em vez
disso, a aproximação Rimé é reconhecer
o valor de tradições diferentes e se beneficiar delas, diferentemente de
combinar ou misturar essas tradições de um modo sincrético.
O não
sectarismo tem uma longa história no Budismo tibetano, e também tem sido
amplamente apreciado no Budismo em geral. O sectarismo também tem uma longa história
no Budismo, e no contexto tibetano foi freqüentemente alimentado por rivalidades
entre as escolas de Budismo, e teve suas raizes em questões essencialmente alheias,
tais como poder político e patronato. Neste livro o autor (Peter Oldmeadow) tenta
situar uma expressão particularmente focalizada do não-sectarismo tibetano (que
é conhecido agora geralmente como 'o movimento Rimé') dentro do contexto mais amplo do relacionamento entre as
escolas budistas tibetanas. Ele também apresenta esses desenvolvimentos em
termos da história tanto do sectarismo como do não sectarismo no Tibete. Isto
talvez proporcione uma lente através da qual nós possamos ver melhor o Budismo
tibetano e a história do Tibete, e talvez também proporcione uma perspectiva
útil na configuração atual do Budismo tibetano.
Para
as figuras principais discutidas neste livro, não sectarismo é um princípio
budista não apenas no sentido mais passivo do valor da tolerância e aceitação
de diferenças, mas também num sentido mais ativo em relação ao discernimento da
verdade ou verdades encontradas nos ensinamentos budistas. Para essas figuras do
Rimé, o não sectarismo flui da
convicção de que contradições e incompatibilidades entre apresentações
diferentes dos ensinos do Buda, e diferentes abordagens para práticas são
apenas aparentes, e que essas dificuldades se dissolvem quando a perspectiva correta
é adotada. Na abordagem Rimé, diferentes
perspectivas e estilos de prática, e mesmo estilos de vida diferentes, são
compreendidos como adaptações hábeis para satisfazer às necessidades de
mentalidades diferentes e indivíduos em fases diferentes de desenvolvimento
espiritual. Porém, isto não deve ser entendido como algum tipo de relativismo. De
acordo com os principais defensores da abordagem Rimé, é somente da perspectiva mais elevada, a perspectiva da budeidade,
que a verdadeira intenção ou verdadeira significação de todos os ensinamentos
do Buda podem ser percebidos.
O
movimento Rimé do décimo nono século
reafirmou os diferentes caminhos e linhagens presentes no Tibete como modos
válidos e efetivos para a iluminação. Com seu centro em Kham no Tibete oriental,
teve um papel importante reavivando tradições marginalizadas e resgatando algumas
que estavam a ponto de extinção. As figuras centrais no movimento se opuseram a solidificação de linhagens de
ensino e escolas, assim como às rivalidades políticas entre elas, e encorajaram
o estudo e práticas de todas as linhagens de um modo imparcial. Encorajando uma
aproximação inclusiva do pensamento budista, reunindo e promovendo uma ampla variedade
de práticas, e revigorando e assegurando a saúde de importantes linhagens
budistas, o movimento Rimé desempenhou
um papel importante na formação do Budismo tibetano dos dias de hoje. Abordando
o Budismo sem preconceito, o movimento Rimé
de décimo nono século contribuiu profundamente para a sobrevivência do Budismo
tibetano através das circunstâncias difíceis que enfrentou nos últimos sessenta
anos, quando sua própria existência estava em jogo.
Alguns
escritores têm estado relutantes em usar a expressão “Movimento Rimé”', argumentando que o que aconteceu
em Kham no décimo nono século não deve ser artificialmente separado de um
renascimento cultural mais amplo que aconteceu no Tibete oriental durante os séculos
décimo oitavo e décimo nono. O autor está atento ao perigo de reificação e ao
longo deste trabalho enquadrou o movimento no contexto mais amplo do Tibete e
nas circunstâncias particulares do Tibete oriental. O movimento Rimé não tem nenhuma “essência” e deve
ser entendido em termos das causas e condições que o constituem. O rótulo “movimento
Rimé” é um modo conveniente de
identificar um conjunto de atitudes, pessoas e eventos que mudaram a prática e
tiveram uma influência duradoura. Essas pessoas influenciaram umas as outras, compartilhara
ideais e idéias comuns, escreveram juntas e explicitamente se lançaram a
preservar e a promover a prática inclusiva do Budismo. Eles reconheciam naquela
época que o que eles estavam fazendo tinha antecedentes, e que era de
importância vital para o presente e para o futuro. Eles talvez não tenham
pensado em si mesmos como um “movimento”, mas isso não significa que esse não
seja um rótulo útil para usarmos, uma vez que um "movimento" geralmente
só é reconhecido como tal retroativamente, quando seu pleno significado for
apreendido.
Três
figuras estavam no coração do movimento: Jamyang
Khyentse Wangpo, 1820-1892, Jamgon
Kongtrul Lodro Thaye, 1813-1899 e Chokgyur
Dechen Lingpa, 1829-1870. Jamyang Khyentse Wangpo foi de muitas formas a
inspiração para o movimento. Ele veio de uma base de tradição Sakya e Nyingma,
mas de fato era portador de todas as Linhagens principais. O movimento Rimé às
vezes refere-se a oito tradições de prática principais; Jamyang Khyentse era
portador de todas elas e podia ensinar qualquer das tradições do Tibete, cada
uma em seus próprios estilos e modos distintos. Jamyang Khyentse permaneceu um
tipo de autoridade última no movimento; sempre que surgia qualquer dúvida ou questão,
ele era o árbitro final. Foi Jamyang Khyentse que inspirou Jamgon Kongtrul para
deixar ir seu próprio resíduo pessoal de parcialidade com relação a uma
tradição particular.
A
experiência de fundo de Jamgon Kongtrul era principalmente na Tradição Karma
Kagyu. Ele havia nascido em um fundo Bonpo e é através dele que a tradição
não-budista Bon entrou mais diretamente no quadro do movimento Rimé. Ele também teve fortes conexões
com a tradição Nyingma. Jamgon Kongtrul era o escritor mais prolífico e erudito
deste grupo de três, e foi o primeiro a usar a termo Rimé sistematicamente para a abordagem não-sectária do Budismo. Ele
escreveu em grande parte a pedido de Jamyang Khyentse, enchendo grandes volumes
que cobriam todos os aspectos da teoria e da prática. Ele compilou uma coleção
inclusiva de tesouros de ensinamentos,
a tradição terma (gter ma), pela primeira vez. Ele era
também um sábio, um meditator e um mestre, mas se fossemos identificar o papel
dele neste grupo particular, ele é certamente o principal erudito e escritor
dos três.
A
terceira figura, Chokgyur Lingpa, era quintessencialmente um visionário. Ele era
um terton (gter ston), um descobridor
de tesouros escondidos (gter ma) que
são ensinamentos que se entende terem sido anteriormente escondidos, ou fisicamente
ou no fluxo mental de grandes instrutores. Semi-alfabetizado, com muito pouca
educação, ele descobriu sua vocação, por assim dizer, através de Jamgon
Kongtrul e Jamyang Khyentse. Havia algumas dúvidas sobre sua posição de visionário
e terton, e foi apenas depois dele
encontrar Jamgon Kongtrul, que o enviou com uma carta de apresentação para o
Grande Lama, Jamyang Khyentse, que ele foi plenamente reconhecido como um terton e sua carreira pública como um
visionário, poderíamos dizer, começou.
Deste
ponto em diante, Jamyang Khyentse, Jamgon Kongtrul e Chokgyur Lingpa
trabalharam muito próximos. Na realidade eles eram instrutores um ao outro,
cada um vendo aos outros dois como seu guru, operando num tipo de relação mútua
de guru/discípulo. Eles descobriram juntos até mesmo termas onde todos os três estavam envolvidos na revelação de um
ensinamento particular. Elas são as três figuras principais do movimento Rimé, o real coração do movimento.
Há também
outros a serem considerardos, incluindo Patrul Rinpoche, em 1871-1927, Mipham
Rinpoche, 1846-1912 e Khenpo Shenga, 1871-1927. Patrul Rinpoche era muito
próximo do grupo principal, e é talvez mais conhecido de nós por ser o autor de
Palavras de Meu Professor Perfeito, a
famosa introdução para o ngondro
(sngon' gro), as práticas preliminares do Longchen
Nyingthig (Essência do Coração da
Grande Expansão) da tradição Dzogchen.
Patrul Rinpoche era um professor muito popular - ele levou os ensinamentos às
pessoas comuns do Tibete oriental, popularizando particularmente o Bodhicaryavathara de Shantideva (Guia do
Estilo de Vida do Bodhisatva) e promulgando prática e preces do Bodhisattva da
Compaixão, Avalokitesvara (spyan corre
gzigs pronunciado 'Chenrezig'), através
do mantra de seis sílaba om mani padme
hum.
Mipham
Rinpoche poderia ser descrito como o filósofo principal do movimento Rimé. Mipham desenvolveu uma defesa
lógica e epistemológica das abordagens orientadas para a prática, com atenção
especial para a filosofia Dzogchen.
Ele desenvolveu uma apresentação acadêmica do discurso filosófico budista, uma
orientação que tinha estado ausente até então.
Khenpo
Shenga foi outro filósofo associado com o movimento. Sua abordagem era apresentar
o Budismo retornando para os principais textos originais indianos e fornecendo
glosas e comentários sobre eles, evitando as disputas que tinham dividido as escolas
budistas no Tibete por centenas de anos.
Provavelmente
é justo dizer que Budismo tibetano moderno, particularmente fora da escola Gelug, é em grande
parte um produto do movimento Rimé. O
legado do movimento Rimé foi conduzido
pelas várias reencarnações de Khyentse. Talvez o mais conhecido nosso seja
Dilgo Khyentse Rinpoche, 1910-1991, que levou o coração do movimento Rimé na segunda metade do século 20.
Antes de Dilgo Khyentse veio Jamyang Khyentse Chokyi Lodro, 1893 -1959, e foi
provavelmente ele acima de todos que personificou o Rimé no Tibete nesta fase iniccial. A morte de Khyentse Chokyi
Lodro no Sikkim em 1959 ocorreu num momento trágico de ampla destruição do
Budismo Tibetano, e a fuga de dezenas de milhares de pessoas daquele país.
Quase sem emenda, Dilgo Khyentse levou o manto do Rimé, mantendo unido muito do Budismo tibetano na diáspora para
Índia, Nepal e Butão, e depois no ocidente. Desde a ocasião da diáspora, o 14°
Dalai Lama tem sido central na manutenção da unidade do povo tibetano. O Dalai
Lama ensina conscientemente e deliberadamente da maneira não sectária Rimé, baseando-se nas diferentes
tradições tibetanas.
No
caso de Khyentse e Kongtrul houve tulkus
múltiplos (reencarnações ou emanações) (sprul sku), não um único tulku. Há
vário Kongtruls incluindo Jamgon Kongtrul, Shechen Kongtrul e Dzigar Kongtrul,
mas todos são entendidos como continuadores da atividade da linhagem de
Kongtrul. Kalu Rimpoche, 1905 -1989, é outra figura importante. Embora Kalu
Rinpoche não tenha o título de Kongtrul, ele foi reconhecido e entendido ser uma
emanação de atividade de Jamgon Kongtrul Rinpoche. Kalu Rinpoche fez um papel
muito importante na preservação da tradição budista tibetana e sua introdução no
ocidente. Por exemplo, foi Kalu Rinpoche o primeiro a conduzir um retiro de
três anos para ocidentais. As linhagens de Chokgyur Lingpa também continuaram através
de uma linha de tulkus e de seus descendentes,
mais notavelmente em tempos recentes através de seu bisneto, Tulku Urgyen, 1920
-1996, que estabeleceu vários monastérios e centros de retiro no Nepal,
inclusive o monastério de Ka-Nying que foi inaugurado em 1976 em Kathmandu.
A
maioria dos lamas tibetanos que vemos no ocidente foram influenciados pelo movimento
Rimé. O Décimo sexto Karmapa requer
menção especial, pois ele estava intimamente ligado de várias formas ao
movimento, como seu antecessor, o Décimo Quinto Karmapa no Tibete. Outra figura
menos famosa é Dezhung Rinpoche, 1906-1987, um lama Sakya e um professor Rimé por excelência. Dezhung Rinpoche
foi para os Estados Unidos em 1960 e lá ensinou em universidades. Foi através
dele que o movimento Rimé ficou
conhecido e foi estudado academicamente.
O que
segue é uma exploração do movimento Rimé.
Primeiramente estabeleceremos o contexto através do exame das diferentes
escolas de Budismo tibetano e a relação entre elas. Depois olharemos para
alguns dos precursores do movimento Rimé e algumas das figuras que o inspiraram.
A seção principal é uma exploração do próprio movimento e das pessoas
envolvidas. Finalmente, vamos examinar como o movimento deu forma ao budismo
tibetano contemporâneo e olhar para a sua influência duradoura hoje.
Texto
selecionado para estudo em Loja realizado em 27 de maio de 2014.
"Nenhum Teósofo, do menos instruído ao mais culto, deve pretender a infalibilidade no que possa dizer ou escrever sobre questões ocultas" (Helena P. Blavatsky, DS, I, pg. 208). A esse propósito, o Conselho Mundial da Sociedade Teosófica é incisivo: "Nenhum escritor ou instrutor, a partir de H.P. Blavatsky tem qualquer autoridade para impor seus ensinamentos ou suas opiniões sobre os associados. Cada membro tem igual direito de seguir qualquer escola de pensamento, mas não tem o direito de forçar qualquer outro membro a tal escolha" (Trecho da Resolução aprovada pelo Conselho Geral da Sociedade Teosófica em 23.12.1924 e modificada em 25.12.1996.
"Nenhum Teósofo, do menos instruído ao mais culto, deve pretender a infalibilidade no que possa dizer ou escrever sobre questões ocultas" (Helena P. Blavatsky, DS, I, pg. 208). A esse propósito, o Conselho Mundial da Sociedade Teosófica é incisivo: "Nenhum escritor ou instrutor, a partir de H.P. Blavatsky tem qualquer autoridade para impor seus ensinamentos ou suas opiniões sobre os associados. Cada membro tem igual direito de seguir qualquer escola de pensamento, mas não tem o direito de forçar qualquer outro membro a tal escolha" (Trecho da Resolução aprovada pelo Conselho Geral da Sociedade Teosófica em 23.12.1924 e modificada em 25.12.1996.
Nenhum comentário:
Postar um comentário