quarta-feira, 3 de julho de 2013

Origem Dependente (Paticcasamuppada) - A Lei Budista da Condicionalidade

Quem vê a origem dependente vê o Dhamma;
quem vê o Dhamma vê a origem dependente.

O Cânone em Pali trata do insight radical que se encontra no núcleo dos ensinamentos budistas, uma “doutrina da libertação”: que o sofrimento em última instância surge devido à ignorância acerca da verdadeira natureza do ser/existir e cessa através da sabedoria, o entendimento direto da natureza de ser/existir. O princípio ontológico contido na origem dependente, como o próprio nome sugere, é o surgimento dos fenômenos na dependência de condições.

Qualquer coisa que venha a ser se origina a partir de condições, permanece com o apoio de condições e cessa quando as suas condições cessam. O que ela ensina é uma condicionalidade específica (idappaccayata), o surgimento dos fenômenos na dependência de condições específicas. Este é um ponto importante que com freqüência é ignorado nos relatos padrão da doutrina. A condicionalidade específica correlaciona os fenômenos na medida em que eles pertencem a certos tipos.

Nenhum acontecimento tem existência por si só.

O ensinamento da interdependência causal é o princípio Budista mais importante. Ele descreve a lei da natureza existente como o curso natural das coisas. O Buda não era um emissário de mandamentos divinos, mas o descobridor desse princípio da natureza e o proclamador dessa verdade para o mundo.

A progressão de causas e condições é a realidade que se aplica a todas as coisas desde o meio ambiente natural, que é uma condição física, externa, até os eventos das sociedades humanas, os princípios éticos, os eventos da vida e a felicidade e sofrimento que se manifestam nas nossas mentes. Esses sistemas de relação causal são parte da mesma verdade da natureza. Nossa felicidade dentro desse sistema natural depende de termos o conhecimento de como ele funciona e de agirmos corretamente dentro dele ao abordarmos os problemas nos níveis pessoal, social e ambiental. Pelo fato de todas as coisas estarem interconectadas e afetarem umas às outras, o êxito em lidar com o mundo consiste em criar harmonia dentro dele.

Por trás de tudo isso, tendemos a interpretar conceitos como a felicidade, liberdade, direitos, independência e paz, de modo a preservar interesses próprios e abusar dos interesses dos outros. Mesmo quando o controle sobre outras pessoas passa a ser visto como uma ação censurável, essa tendência agressiva passa então a ser dirigida em outras direções, tal como o meio ambiente. Agora que estamos começando a compreender que é impossível na realidade controlar outras pessoas ou outras coisas, o único sentido que resta na vida é preservar os interesses próprios e proteger os direitos territoriais. Ao vivermos dessa maneira, com essa compreensão falha e crenças equivocadas, colocamos o meio ambiente em desequilíbrio, a sociedade entra em convulsão e a vida humana fica desorientada, tanto física como mentalmente. O mundo parece estar repleto de conflito e sofrimento.

Todas as facetas da natureza – o mundo físico e o mundo humano, o mundo das condições (dhamma) e o mundo das ações (kamma), o mundo material e o mundo mental – estão conectados e inter-relacionados, eles não podem ser separados. A desordem e a anormalidade num setor irão afetar os outros setores. Se quisermos viver em paz, temos que aprender a viver em harmonia com todas as esferas da natureza, tanto internas como externas, o individual e o social, o físico e o mental, o material e o imaterial.

Para criar a verdadeira felicidade é da maior importância que não somente reflitamos sobre a inter-relação de todas as coisas na natureza, mas que também nos vejamos com clareza como um sistema de relações causais, como parte da natureza, tornando-nos conscientes primeiro dos fatores mentais internos, em seguida dos fatores das nossas experiências de vida, da sociedade e por fim do mundo à nossa volta. É por isso que em todos os sistemas de relação causal baseados na lei “Com o surgimento disso, aquilo surge; Com a cessação disto, aquilo cessa,” os ensinamentos Budistas principiam e sempre enfatizam os fatores envolvidos na criação do sofrimento situados na consciência do indivíduo – “porque há ignorância, surgem as formações.” Uma vez que esse sistema de relações causais seja compreendido no nível interno, estaremos então em posição de ver as conexões entre esses fatores internos e as relações causais na sociedade e no meio ambiente natural. Essa é a abordagem adotada neste livro.


1. Uma visão geral da Origem Dependente

O princípio da Origem Dependente é um dos ensinamentos Budistas mais importantes e único. Em muitos trechos do Cânone em Pali, ele foi descrito pelo Buda como uma lei da natureza, uma verdade fundamental que existe independente do surgimento de seres iluminados.

Os excertos a seguir indicam a importância que o Buda atribuía ao princípio da Origem Dependente:

“Quem vê a origem dependente vê o Dhamma; quem vê o Dhamma vê a origem dependente.” [MN.I.191](MN 28)

“Verdadeiramente, bhikkhu, um nobre discípulo que é hábil e que compreendeu por ele mesmo, independente da fé em outros, que ‘Quando existe isso, aquilo existe; com o surgimento disso, aquilo surge...’

Buda o previne para não subestimar a profundidade do princípio da Origem Dependente:
“Que incrível! Nunca me havia ocorrido isso antes, Senhor. Este princípio da Origem Dependente, embora tão profundo e difícil de ser visto, no entanto para mim, ele parece tão simples, claro como a luz do dia!”

Esta origem dependente é um ensinamento profundo, difícil de ser visto. É por não entender, não compreender e não penetrar de forma completa este ensinamento que os seres ficam confusos como um novelo embaraçado, como uma bola de cordas cheias de nós, como uma corda de palha puída e não conseguem escapar do inferno dos mundos inferiores e da roda do samsara." [S.ll.92](DN15)

Quem já estudou a vida do Buda poderá se lembrar das suas ponderações pouco depois da Iluminação, quando ele ainda não havia começado e expor os ensinamentos. Naquela ocasião, o Buda relutava em ensinar, tal como relatado nas Escrituras:

“Eu pensei: ‘Este Dhamma que eu alcancei é profundo, difícil de ver e difícil de compreender, pacífico e sublime, que não pode ser alcançado através do mero raciocínio, sutil, para ser experimentado pelos sábios.

“Mas, esta geração se delicia com a adesão, está excitada com a adesão, desfruta da adesão. É difícil para uma geração como esta ver esta verdade, isto é, a condicionalidade isto/aquilo e a origem dependente. E também é difícil de ver esta verdade, isto é, o cessar de todas as formações, o abandono de todas aquisições, o fim do desejo, desapego, cessação, Nibbana. Se eu fosse ensinar o Dhamma, os outros não me entenderiam e isso seria fatigante, problemático para mim .’.’” [Vin,I.4; MN.I.167] (MN 26)

Tipos de Origem Dependente encontrados nas escrituras:

Primeiro, aquelas que descrevem o princípio geral e segundo, aquelas que especificam os fatores constituintes ajuntados numa cadeia.

a. O princípio geral
Em essência, este princípio corresponde àquilo que em Pali é conhecido como idappaccayata, o princípio da condicionalidade.
A. Quando existe isso, aquilo existe.
Com o surgimento disso, aquilo surge.

B. Quando não existe isso, aquilo também não existe.
Com a cessação disto, aquilo cessa. [SN.II.28,65]

b. O princípio em funcionamento

Da ignorância como condição, as formações [surgem]
Das formações como condição, a consciência.
Da consciência como condição, a mentalidade-materialidade.
Da mentalidade-materialidade como condição, as seis bases dos sentidos.
Das seis bases dos sentidos como condição, o contato.
Do contato como condição, a sensação
Da sensação como condição, o desejo.
Do desejo como condição, o apego.
Do apego como condição, o ser/existir.
Do ser/existir como condição, o nascimento.
Do nascimento como condição, então o envelhecimento e morte,
tristeza, lamentação, dor, angústia e desespero surgem.
Essa é a origem de toda essa massa de sofrimento.
Do desaparecimento e cessação sem deixar vestígios dessa mesma ignorância, cessam as formações.
Da cessação das formações, cessa a consciência.
Da cessação da consciência, cessa a mentalidade-materialidade.
Da cessação da mentalidade-materialidade, cessam as seis bases dos sentidos.
Da cessação das seis bases dos sentidos, cessa o contato.
Da cessação do contato, cessa a sensação.
Da cessação da sensação, cessa o desejo.
Da cessação do desejo, cessa o apego.
Da cessação do apego, cessa o ser/existir.
Da cessação do ser/existir, cessa o nascimento.
Da cessação do nascimento, então, o envelhecimento e morte,
tristeza, lamentação, dor, angústia e desespero cessam.
Essa é a cessação de toda essa massa de sofrimento. [Vin.I.I-3; SN.II.l,65] (SN XII.2)

Observe que este formato trata o princípio da Origem Dependente como o processo do surgimento e cessação do sofrimento. Esse é o fraseado mais comumente encontrado nos textos.

Somos na verdade avisados a não tomar a ignorância como a Primeira Causa com a seguinte descrição do surgimento condicionado da ignorância - Asava-samudaya avijja-samudayo, asava-nirodha avijja-nirodho – a ignorância surge com o surgimento das impurezas e cessa com a cessação destas. [MN.I.55](MN 10)


2. Interpretando a Origem Dependente

1. Como uma demonstração da evolução da vida ou do mundo, baseada na interpretação literal de algumas frases como por exemplo loka-samudaya (surgimento do mundo) [SN.II.73](SN.XII.44)
2. Como uma demonstração do surgimento e cessação da vida individual ou do sofrimento individual.
2.1 Demonstrando o processo durante um longo período de tempo, de uma vida para outra.
2.2 Demonstrando um processo que ocorre continuamente.

Os ensinamentos Budistas, como mostrado nesta interpretação, explicam as coisas simplesmente como um tipo de evolução que avança de acordo com as leis naturais de causa e efeito.

Qualquer Causa Primeira, quer seja um Deus Criador ou qualquer outra coisa, é impossível. A interpretação do ciclo de Origem Dependente como uma descrição da evolução da vida ou do mundo somente será possível se for apresentado um quadro do universo funcionando de acordo com o processo natural de crescimento e declínio, desdobrando-se de forma incessante de acordo com os ditames de causa e efeito.
Tudo são causas e condições

Nos seus ensinamentos o Buda intencionava apresentar apenas aquilo que pudesse ser empregado para solucionar os problemas da vida em termos práticos. Ele não encorajava o entendimento da realidade através da conjectura, debate ou análise de problemas metafísicos, que ele considerava ser impossível. Por essa razão, a avaliação de um ensinamento quanto a ser genuinamente Budista deve envolver a avaliação do seu valor em relação aos princípios éticos.

O que pode ser obtido dessa definição é:

(1) Uma visão mais ampla do mundo, na qual ele progride de acordo com o fluxo de causas e efeitos e é limitado pelas condições encontradas no processo natural. Não existe um Criador ou Nomeador, tampouco o mundo é uma série de acidentes sem propósito. Os objetivos não podem ser alcançados apenas por meio da aspiração, suplicando aos deuses ou por meio da sorte, mas devem ser concretizados através do esforço auto-suficiente baseado no entendimento das causas e condições.

(2) Criar as causas corretas para obter os resultados desejados: só poderá ser feito se houver a compreensão dessas causas e da forma como elas se interconectam com os respectivos resultados. Isso requer a presença de uma certa compreensão (pañña) que seja capaz de discernir essas complexidades; é necessário tratar a vida e relacionar-se com ela com sabedoria.

(3) A compreensão de que os processos naturais estão sujeitos ao contínuo de causa e efeito pode ser eficaz na redução da delusão que causa o apego e a identificação das coisas como sendo o eu. Essa perspectiva permite um relacionamento mais saudável e independente com as coisas da forma como elas são.

O entendimento do princípio da Origem Dependente como uma teoria da evolução do mundo, embora se harmonize com os ensinamentos do Buda, é no entanto um tanto quanto superficial. Carece de uma análise profunda, detalhada, momento a momento dos componentes físicos e mentais. Não é suficientemente sólido ou claro para que de forma inequívoca produza os três resultados mencionados acima, especialmente o terceiro. Para investigar com mais profundidade a verdade, é necessário examinar o desdobramento dos eventos naturais mais detalhadamente no nível pessoal, vendo com clareza a verdade desse processo à medida que ele ocorre nas nossas vidas, até mesmo em eventos muito breves. Com esse tipo de clara atenção, será mais provável que os três benefícios mencionados acima ocorram. A propósito, esta interpretação mais imediata não exclui a interpretação do processo como evolução a longo prazo.

Qualquer explicação do princípio da Origem Dependente como uma teoria da evolução do mundo, quer seja num sentido mais básico ou mais sutil, irá carecer de profundidade. A segunda interpretação, que diz respeito à vida pessoal e em particular ao processo que dá continuidade ao sofrimento pessoal, é muito mais profunda.

Neste trabalho será atribuído um capítulo para essa interpretação, seguida da interpretação já mencionada em parte acima, tomando a Origem Dependente como ocorrendo em cada momento mental (item 2.2).

O significado básico -- Na sua essência, o princípio da Origem Dependente é uma descrição do processo de surgimento e da cessação do sofrimento. A palavra ‘sofrimento’ (dukkha) é um termo bastante importante no Budismo. Ela aparece em muitos dos ensinamentos mais importantes, tal como nas Três Características (tilakkhana) e nas Quatro Nobres Verdades (ariyasacca). Para entender de forma mais clara o princípio da Origem Dependente é essencial primeiro entender essa palavra dukkha ou sofrimento.

O termo 'dukkha' é usado nos ensinamentos do Buda com um sentido muito mais amplo do que o seu equivalente em Português, ‘sofrimento' , que dividem o sofrimento em três tipos [DN.III.216; SN.IV.259; SN.V.56].

1.    Dukkha-dukkhata: o sofrimento como sensação. Isto inclui ambos o sofrimento físico e mental – dores, aflições, tristeza e assim por diante – muito similar ao que comumente é compreendido por meio da palavra ‘sofrimento’ em Português. Isto corresponde à palavra em Pali 'dukkhavedana' (‘a sensação de sofrimento’ que em geral surge sempre que uma sensação desagradável é experimentada).

2. Viparinama-dukkhata: o sofrimento inerente ao processo de mudança; o sofrimento oculto na inconstância da felicidade. Esse é o sofrimento que é causado pelas mudanças nos momentos de felicidade e pela cessação dela. Isto pode ser observado num dia de muito calor em que você esteve trabalhando ao ar livre: pode ser que você nem perceba o calor se estiver acostumado a ele, mas uma vez que você entre num cômodo com ar condicionado, a sensação agradável resultante poderá provocar uma reação desagradável no momento em que você sair outra vez – o calor parecerá insuportável. A sensação de calor neutra original se transforma numa sensação desconfortável devido ao prazer do ar condicionado. O prazer do ar condicionado faz com que a sensação subseqüente de calor pareça ser desagradável. É quase como se o sofrimento estivesse dormente, apenas para se revelar quando a sensação agradável se esvai. Quanto mais intensa for a sensação agradável, mais intensa será a mudança para o sofrimento, o qual parece expandir na proporção da intensidade da sensação agradável. Se a sensação agradável não tivesse surgido, o sofrimento na dependência desta provavelmente não teria surgido. Se a sensação agradável estiver acompanhada pela consciência da sua natureza efêmera, o temor, preocupação e ansiedade tenderão a encobri-la. Quando, com o tempo, a sensação agradável desaparecer, em seguida surgirá a nostalgia, “Eu tinha tamanha felicidade, agora ela se foi.”

3. Sankhara dukkhata: o sofrimento inerente a todos os sankhara, todas as coisas que surgem a partir de determinantes, especificamente os cinco khandhas. Isto se refere à sujeição de todas as coisas condicionadas às forças contrárias do nascimento e da dissolução, ao fato de que elas não são perfeitas em si mesmas, mas existem apenas como parte do contínuo de causa e efeito. Como tal, é provável que elas causem o sofrimento, (isto é, a sensação de sofrimento ou dukkha-dukkhata), sempre que houver a cobiça inflexível e o apego suportado pela ignorância (avijja-tanha-upadana).

O tipo mais importante de sofrimento é o terceiro, que descreve a natureza inerente de todas as condições, tanto físicas como mentais. Sankhara-dukkhata, como um atributo natural, assume importância psicológica quando é reconhecido que todas as condições são incapazes de produzir o perfeito contentamento, e como tal irão causar o sofrimento a qualquer um que tente se apegar a elas.

O princípio da Origem Dependente mostra a interdependência e a inter-relação de todas as coisas sob a forma de um contínuo. Como um contínuo, ele pode ser analisado sob várias perspectivas distintas:

Todas as coisas são inter-relacionadas e interdependentes; todas as coisas existem em relação umas às outras; todas as coisas dependem de fatores determinantes; todas as coisas não possuem existência duradoura, nem mesmo por um momento; todas as coisas não possuem uma identidade intrínseca; todas as coisas não possuem uma Causa Primeira ou Gênese.

Colocando de outro modo, o fato de todas as coisas se apresentarem sob formas diversas de surgimento e declínio mostra que a sua verdadeira natureza é de um contínuo ou processo. E isso mostra que elas são um composto de muitos fatores determinantes. O contínuo surge porque todos os vários fatores determinantes estão inter-relacionados. O contínuo se move e muda de formato porque os vários fatores em questão não duram, nem mesmo um momento. As coisas não duram, nem mesmo um momento, porque elas não possuem uma identidade intrínseca. Como elas não possuem identidade intrínseca, elas dependem totalmente de fatores determinantes. Como os fatores determinantes são inter-relacionados e interdependentes, eles mantêm o formato de um contínuo, e o fato de serem assim inter-relacionados e interdependentes indica que eles não possuem uma Causa Primeira.

Apresentando sob a forma negativa: se as coisas tivessem uma identidade intrínseca elas deveriam ter alguma estabilidade; se elas fossem estáveis, mesmo que por um momento, elas não poderiam ser na verdade inter-relacionadas; se elas não fossem inter-relacionadas elas não poderiam ter o formato de um contínuo; se não houvesse um contínuo de causa e efeito, os processos da natureza seriam impossíveis; e se houvesse algum tipo de identidade intrínseca como parte desse contínuo não seria possível haver um verdadeiro processo de causa e efeito inter-relacionado. O contínuo de causa e efeito que possibilita que todas as coisas existam da forma como são, só pode operar porque tais coisas são transitórias, efêmeras, constantemente surgindo e cessando sem possuir uma identidade intrínseca própria.

A propriedade da transitoriedade, efemeridade, constantemente surgindo e cessando, é chamada aniccata. A propriedade de estar sujeito ao nascimento e dissolução, de inerentemente implicar em sofrimento e estresse e de ser intrinsecamente imperfeito, é chamada dukkhata. A qualidade de vazio de qualquer tipo de eu real ou substância é chamada anattata. O princípio da Origem Dependente demonstra essas três propriedades em todas as coisas e mostra a inter-relação e inter-reação de todas as coisas para produzir os diversos eventos na natureza.

O funcionamento do princípio da Origem Dependente se aplica a todas as coisas, tanto físicas como mentais e se expressa através de várias leis naturais. Elas são:

Dhammaniyama: a lei da natureza de causa e efeito;
Utuniyama: a lei da natureza que diz respeito aos objetos físicos (leis físicas);
Bijaniyama: a lei da natureza que diz respeito aos seres vivos e à hereditariedade (leis biológicas);
Cittaniyama: a lei da natureza que diz respeito aos processos mentais (leis psicológicas ou psíquicas);
Kammaniyama: a lei de kamma que é de particular importância na determinação do bem estar humano e está diretamente relacionada com o comportamento humano sob a perspectiva da ética.

Vale a pena observar que kamma, como todas as demais relações de causa e efeito, só é capaz de funcionar porque todas as coisas são impermanentes (anicca) e desprovidas de uma entidade intrínseca (anatta). Se as coisas fossem permanentes e tivessem uma natureza intrínseca, nenhuma das leis naturais, incluindo a lei de kamma, poderiam operar. Além disso, essas leis suportam a verdade de que não existe uma Causa Primeira ou Gênese.

Os conceitos são formados na mente através da associação de relações. Para a maioria das pessoas, uma vez que um conjunto de relações tenha constituído um conceito, o hábito de se apegar às coisas através do desejo (tanha) e do apego (upadana) adere a esses conceitos como se estes fossem entidades fixas. O apego isola o conceito da sua relação com as outras coisas e macula a percepção com noções de ‘eu’ e ‘meu,’ o que conduz à identificação com essas coisas e dessa forma impede o verdadeiro entendimento.

“Como pode aquilo que é eterno criar algo não eterno?”

 “Porque a existência tem que ser precedida da não existência?”

A crença comum de que toda as coisas possuem um Criador é uma outra idéia que contradiz a realidade. Essa crença é o resultado do pensamento dedutivo, baseado na observação da habilidade humana em criar coisas e produzir artefatos de vários tipos.

Em todo caso, a busca pelos fatos que digam respeito a uma Causa Primeira, ou Deus Criador e outras coisas semelhantes, possuem pouco valor dentro da visão Budista, porque elas não são essenciais para que a vida tenha sentido.


3. O Homem e a Natureza

Todos organismos vivos são compostos dos cinco khandhas (grupos): rupa ou forma material; vedana, sensação; sañña, percepção; sankhara, formações ou impulsos volitivos; e viññana, consciência.

Os cinco khandhas, ou vida, estão sujeitos às Três Características: condição de aniccata – impermanentes e instáveis; ; anattata – não possuem um eu ou essência intrínseca; e dukkhata – sendo constantemente oprimidos pela origem e cessação e prontos a causar o sofrimento sempre que com eles nos associemos por meio da ignorância.
Mas para a maioria das pessoas, a resistência ao fluxo resulta do apego equivocado a uma ou outra característica desse contínuo como sendo o eu e do desejo que esse eu prossiga de um certo modo específico. Quando as coisas não obedecem aos desejos, o estresse resultante causa frustração e posteriormente um apego ainda mais intenso. A vaga noção da inevitabilidade da mudança nesse eu tão querido, ou a suspeita de que ele possa na verdade não existir, fazem com que esse apego e desejo se tornem ainda mais desesperados, e o medo e a ansiedade fincam raízes profundas na mente.

Os estados mentais são avijja – a ignorância da verdade, vendo as coisas como sendo o eu; tanha – desejo de que esse eu imaginário obtenha várias coisas ou estados; e upadana - apego e adesão a essas idéias equivocadas e tudo aquilo que elas implicam. Essas impurezas estão arraigadas na mente, de onde elas dirigem o nosso comportamento, moldam a identidade e influenciam as mudanças de curso nas nossas vidas, tanto de modo explícito como velado. Em geral, essas são as causas do sofrimento para todos seres não iluminados.

Em essência estamos lidando com a desarmonia entre dois processos:

1. O processo natural da vida, que prossegue de acordo com a lei fixa, natural, das três Características. Estas são expressas através do nascimento (jati), envelhecimento (jara) e morte (marana), tanto no seu sentido mais básico como no mais profundo.
2. O processo fabricado do desejo e apego, baseado na ignorância da verdadeira natureza da vida, que provoca a percepção equivocada de, e um apego a, um eu – ‘criando um eu por meio do qual obstruir o fluxo da natureza.’ Essa é uma vida limitada pela ignorância, vivida com apego, em cativeiro, em contradição com a lei da Natureza e vivida com medo e sofrimento.
A vida, sob o ponto de vista da ética, pode-se dizer que compreende dois tipos de eu:
O ‘eu convencional’ e essa convenção pode ser empregada de forma hábil em relação à conduta moral.

Depois existe o eu ‘fabricado,’ produzido pela ignorância e agarrado com força pelo desejo e apego. O eu convencional não é fonte de problemas quando é entendido como tal, de forma clara. O eu ‘fabricado,’ no entanto, oculto dentro do eu convencional, é o eu do apego, que tem que se sujeitar às vicissitudes do primeiro eu e por isso produz o sofrimento. Em outras palavras, é um processo em dois níveis: num nível está o eu convencional, no outro nível está o apego deludido ao eu convencional, como se este fosse uma realidade absoluta. Se o apego deludido se transformar em compreensão e entendimento, o problema será solucionado.

Uma perspectiva de vida baseada no apego ao conceito de um eu traz muitas repercussões prejudiciais, tais como:
Apego a desejos egoístas, (kamupadana), a busca interminável pela satisfação destes e a sede ambiciosa pelos objetos do desejo;
A identificação e a aderência inquebrantável às idéias (ditthupadana) . Esse tipo de apego produz uma deficiência na fluidez dos poderes de raciocínio e conduz à arrogância e intolerância;
Apego a preceitos e rituais (silabbatupadana). Percebendo apenas uma relação mística ou tênue em tais práticas, não se pode nunca estar verdadeiramente seguro delas, mas o medo e a preocupação com o eu fabricado produzem um esforço desesperado para se agarrar a qualquer coisa que possa servir como fonte de segurança, não importando quão mística ou obscura esta seja.

O estresse e sofrimento surgem não somente no indivíduo, mas também radiam para o exterior, para toda a sociedade. Assim, a condição do apego (upadana) pode ser identificada como a fonte principal de todos os problemas gerados pelo homem na sociedade.

O ciclo de Origem Dependente mostra a origem dessa vida estressante, auto-centrada, e o seu inevitável resultar em sofrimento. Com o rompimento do ciclo, a vida estressante é transformada completamente, resultando numa vida vivida com sabedoria, em harmonia com a natureza e libertada do apego a um eu.

De acordo com os ensinamentos do Buda, não existe nada que exista além ou separado da natureza. Todos os eventos na natureza prosseguem de acordo com a orientação da inter-relação dos fenômenos naturais. Não existem acidentes, nem existe uma força criativa independente de causas. Eventos aparentemente impressionantes e miraculosos surgem inteiramente a partir de causas, mas como algumas vezes as causas estão obscurecidas no nosso conhecimento, esse eventos podem parecer miraculosos, mas na verdade não existe nada que seja verdadeiramente ‘sobrenatural’. Os seres humanos são parte da natureza, não estão separados dela.

A sabedoria em relação tanto aos fenômenos físicos como aos mentais é essencial para que realmente se possa beneficiar da natureza.

A seguir encontra-se um ensinamento do Buda que ilustra as diferenças entre a vida vivida com apego e a vida vivida com sabedoria:

“Bhikkhus, quando a pessoa comum sem instrução é tocada por uma sensação dolorosa, ela fica triste, angustiada e lamenta, bate no peito, chora e fica perturbada. “Ao ser tocada por essa mesma sensação dolorosa, ela sente aversão pela sensação de dor. Sentindo aversão pela sensação dolorosa, a tendência subjacente à aversão é aquilo que está por detrás disso. Ao ser tocada pela sensação dolorosa, ela busca prazer nos prazeres sensuais. Por qual razão? Porque a pessoa comum sem instrução não sabe como escapar das sensações dolorosas, exceto através dos prazeres sensuais.

“Se ela sentir uma sensação prazerosa, ela sente isso com apego. Se ela sentir uma sensação dolorosa, ela sente isso com apego. Essa, bhikkhus, é uma pessoa comum sem instrução que está apegada ao nascimento, envelhecimento, morte, tristeza, lamentação, dor, angústia e desespero; ela está apegada ao sofrimento, eu digo.

“Bhikkhus, quando um nobre discípulo bem instruído é tocado por uma sensação dolorosa, ele não fica triste, angustiado e lamenta, não bate no peito, chora e fica perturbado. Ele sente apenas uma sensação - corporal, não a sensação mental. “Se ele sentir uma sensação prazerosa, ele sente isso desapegado. Se ele sentir uma sensação dolorosa, ele sente isso desapegado. Esse, bhikkhus, é um nobre discípulo bem instruído que está desapegado do nascimento, envelhecimento, morte, tristeza, lamentação, dor, angústia e desespero; ele está desapegado do sofrimento, eu digo.

“Essa, bhikkhus, é a distinção, a disparidade, a diferença entre o nobre discípulo bem instruído e a pessoa comum sem instrução.” [SN.IV.207-210] (SNXXXVI.6)


4. O Formato Padrão

Os principais fatores
a. Ignorância e desejo-apego
b. Formações e ser/existir
c. Consciência até sensações; nascimento, envelhecimento e morte

Como o princípio da Origem Dependente revolve sob a forma de um ciclo, sem início e sem fim, uma forma de representação mais acurada está demonstrada na figura acima.

No entanto, como o princípio da Origem Dependente funciona como um ciclo, ele não para por aí. O último fator se torna um elo crucial na continuação do ciclo. De modo mais específico, a tristeza, lamentação e assim por diante são todos manifestações das impurezas. Essas impurezas são quatro em número, isto é: a preocupação com a satisfação dos desejos dos cinco sentidos, (kamasava); apego a idéias e crenças, num exemplo em que o corpo é um eu ou pertence a um eu, (ditthasava); desejo por vários estados de ser e a aspiração de alcançá-los e mantê-los, (bhavasava); e a ignorância em relação ao modo como as coisas são, (avijjasava).

O envelhecimento e a morte causam um efeito inflamatório nas impurezas: em relação a kamasava, eles causam sentimentos de separação das pessoas amadas e estimadas; em relação a ditthasava, eles confrontam a crença inata no eu e o apego ao corpo; em relação a bhavasava, eles significam a separação de estados de ser muito queridos; em relação a avijjasava, a ausência de compreensão no nível fundamental, (tal como não compreender a natureza da vida, envelhecimento e morte e como devemos nos relacionar com isso), o envelhecimento e a morte fazem com que o ser não iluminado experimente medo, melancolia, desespero e o apego a superstições. Essas impurezas são, portanto, os fatores determinantes para que tristeza, lamentação, dor, angústia e desespero surjam assim que o envelhecimento e a morte apareçam.

* * *‘Quanto à ignorância, saiba que ela surge a tristeza...’ [Vism.577]

* * *‘A ignorância está presente enquanto a tristeza estiver presente.’ [Vism.529]

O ciclo da Origem Dependente também é conhecido como a Roda do Ser/existir, (bhavacakka), ou Roda do Samsara. Esse modelo abrange três vidas – a ignorância e as formações estão numa vida, a consciência até o ser/existir numa segunda vida, enquanto que o envelhecimento e morte (com tristeza, lamentação e assim por diante) em uma terceira.

Tomando a vida intermediária como sendo a presente, podemos dividir os três períodos de vida, com o conjunto completo dos doze elos do ciclo da Origem Dependente, em três períodos de tempo da seguinte forma:
1. Vida Passada – Ignorância, formações
2. Vida Presente – Consciência, mentalidade-materialidade, bases dos sentidos, contato, sensação, desejo, apego, ser/existir.
3. Vida Futura – Nascimento, envelhecimento e morte (tristeza, lamentação, dor, angústia e desespero).

Podemos agora descrever o ciclo completo em quatro seções:
1. Causa Passada = Ignorância, formações.
2. Resultado Presente = Consciência, mentalidade-materialidade, bases dos sentidos, contato, sensação.
3. Causa Presente = Desejo, apego, ser/existir.
4. Resultado Futuro = Nascimento, envelhecimento, morte (tristeza, lamentação, etc.)

A ignorância é a causa principal de nascimento nos estados miseráveis, porque a mente envolvida pela ignorância é incapaz de distinguir entre o bem e o mal, certo e errado, benéfico e prejudicial. Como resultado não existe um padrão de comportamento, as ações são aleatórias e existe maior probabilidade que o resultado seja o kamma ruim do que o kamma bom.
Que a ignorância e o desejo são fatores determinantes significativos e que surgem em conjunto no processo da Origem Dependente.

A descrição da Origem Dependente é aquela encontrada com mais freqüência nas escrituras. Ela busca explicar a Origem Dependente como samsaravatta, o ciclo de renascimentos, mostrando as conexões entre três vidas – o passado, o presente e o futuro.

Aqueles que não concordarem com essa interpretação, ou que preferirem algo mais imediato, poderão encontrar outras alternativas não só no Abhidhamma Pitaka, onde o princípio da Origem Dependente é mostrado na sua totalidade em um momento mental, como também poderão interpretar as mesmas palavras do Buda empregadas para sustentar o modelo padrão sob um ângulo distinto, proporcionando um quadro bastante diferente do princípio da Origem Dependente, algo que é defendido pelos ensinamentos e referências textuais de outras fontes.
 Se o ciclo puder ser claramente compreendido da forma como opera no presente, conseqüentemente o passado e o futuro também serão compreendidos de forma clara, porque eles são todos parte do mesmo ciclo.

Como referência, considere as palavras do Buda:

“Udayin, se alguém fosse recordar as suas muitas vidas passadas, isto é, um nascimento, dois nascimentos... assim, nos seus modos e detalhes, se ele se recordasse das suas muitas vidas passadas, então um dos dois, ou ele me perguntaria uma questão sobre o passado, ou eu poderia perguntar-lhe uma questão sobre o passado, e ele poderia satisfazer a minha mente com a resposta à minha questão ou eu poderia satisfazer a mente dele com a minha resposta à questão dele. Se alguém por meio do olho divino, que é purificado e sobrepuja o humano, vê seres falecendo e renascendo, inferiores e superiores, bonitos e feios, afortunados e desafortunados... e compreende como os seres continuam de acordo com as suas ações, então um dos dois, ou ele me perguntaria uma questão sobre o futuro, ou eu poderia perguntar a ele uma questão sobre o futuro, e ele poderia satisfazer a minha mente com a resposta à minha questão ou eu poderia satisfazer a mente dele com a minha resposta à questão dele. Mas deixemos de lado o passado, Udayin, deixemos de lado o futuro. Eu lhe ensinarei o Dhamma: Quando existe isso, aquilo existe; Com o surgimento disso, aquilo surge. Quando não existe isso, aquilo também não existe; Com a cessação disto, aquilo cessa.” [M.II.31](MN 79)

O chefe de família Gandhabhaga, tendo sentado a uma distância respeitável, dirigiu-se ao Abençoado da seguinte forma, “Que o Abençoado me ensine a origem e a cessação do sofrimento.”

O Abençoado respondeu, “Chefe de família, se eu lhe ensinasse a origem e a cessação do sofrimento referindo-me ao passado assim, ‘No passado havia isto,’ a dúvida e a perplexidade surgiriam em você por conta disso. Se eu lhe ensinasse a origem e a cessação do sofrimento referindo-me ao futuro assim, ‘No futuro haverá isto,’ a dúvida e a perplexidade surgiriam em você por conta disso. Chefe de família, eu, aqui e agora, irei lhe ensinar, a origem e a cessação do sofrimento, aqui e agora.” [SN.IV.327]

“Agora quando esses contemplativos e brâmanes possuem esta doutrina e entendimento: ‘Tudo aquilo que uma pessoa experimentar, quer seja prazer, dor ou nem prazer, nem dor, tudo é causado pelas ações passadas,’ então eles vão além daquilo que conhecem por si mesmos e daquilo que é aceito no mundo como verdadeiro. Portanto, eu digo que esses contemplativos e brâmanes estão equivocados.” [SN.IV.230](SN.XXXVI.21)

“Bhikkhus, aquilo que alguém intenciona, aquilo que alguém planeja, e qualquer coisa pela qual alguém tenha preferência: isto se torna uma base para a manutenção da consciência. Quando há uma base, haverá um suporte para o estabelecimento da consciência. Quando a consciência se estabelece e cresce, há a produção de uma renovada existência futura. Quando há a produção de uma renovada existência futura, o futuro nascimento, e morte, lamentação, dor, angústia e desespero surgem. Essa é a origem de toda essa massa de sofrimento.” [SN.II.65] (SN XII.38)


Embora esta interpretação do princípio da Origem Dependente deva ser entendida pelo que ela é, apesar disso não descartamos a forma estabelecida pelo modelo padrão. Então, antes de explorar o seu significado deveríamos primeiro reiterar o modelo padrão, adaptando as definições de acordo com esta interpretação.

Texto selecionado pela irmã Hilda Espíndola Garcia para estudo em Loja realizado em 2 de julho de 2013.

"Nenhum Teósofo, do menos instruído ao mais culto, deve pretender a infalibilidade no que possa dizer ou escrever sobre questões ocultas" (Helena P. Blavatsky, DS, I, pg. 208). A esse propósito, o Conselho Mundial da Sociedade Teosófica é incisivo: "Nenhum escritor ou instrutor, a partir de H.P. Blavatsky tem qualquer autoridade para impor seus ensinamentos ou suas opiniões sobre os associados. Cada membro tem igual direito de seguir qualquer escola de pensamento, mas não tem o direito de forçar qualquer outro membro a tal escolha" (Trecho da Resolução aprovada pelo Conselho Geral da Sociedade Teosófica em 23.12.1924 e modificada em 25.12.1996.

2 comentários:

Hassaun Toro disse...

Muito bom!!

Unknown disse...

Olá! Esta roda era muiito usada pelo Professor Kaled Amer Asrauy. Ele ensinava na Loja?